10.1.07

Colidouescapo

Augusto de Campos
Amauta Editorial
Ou a poesia quebra a cara ou sai dessa mais rica

Pense na proximidade destes sons: colidouescapo e caleidoscópio. Lembra alguma coisa? Esta é a “invenção” de Augusto de Campos e seu irônico Colidouescapo. O “livro” — que repete o projeto gráfico de 1971, vem encapado em dobradura de papel-cartão e miolo em folhas soltas dobradas — permite que a poesia seja reconstruída pelo leitor (jogo lúdico e função poética) formando palavras, quase sempre estranhas. Mas não tente encontrá-las no dicionário! O que se busca aqui é o estranhamento e novos paradigmas. Alguém sabe o significado de restento, exiscontro (tento novamente?, existe encontro? ou ex-encontro?)? Augusto de Campos, um dos expoentes do Concretismo (junto com o irmão Haroldo e Décio Pignatari), leva a poesia a sua forma mais sintética e propõe que o leitor faça a sua “despoesia”.
Revelador aqui é o poema central ser a palavra desesprezo. Desprezo (não prezo a) pela poesia formal, descritiva, parnasiana. A experiência nos remete à morte da poesia, mas não é. Colideouespaco colidiu e escapou: a poesia permanece.

The Rolling Stones - Rock Files

Truth and Lies
ST2 Vídeo
Nem tudo é verdade
Por AARocha

Este DVD traz a história da “maior banda do planeta” sobre a ótica da sensacionalismo e de como se inventou o mito: Beatles = certinhos, Stones = depravados. Cobre o período de 1962-2002, as diferentes formações, prisões e escândalos que envolveram os Stones, e conclui melancolicamente: os rebeldes do rock de ontem são o sistema de hoje. Inclui cenas de Londres dos ‘60 que olhos fetichistas vão querer rever.

Sivuca, 1930-2006

Mestre Sivuca se foi
Por AARocha

Nascido Severino Dias de Oliveira, em Itabaiana (Paraíba), em 1930, Sivuca já tinha ouvido absoluto desde menino: durante festas na cidade, quando a banda começava as suas retretas, ele tampava os ouvidos para não ouvir a desafinação. Aos 9 anos começou a tocar sanfona, flauta e violão e iniciou a trajetória para tornar-se um dos mais celebrados multi-instrumentistas brasileiros de todos os tempos. “João e Maria” (parceria com Chico Buarque), “Feira de Mangaio” (com Gloria Gadelha) e “No Tempo dos Quintais” (com Paulinho Tapajós) são algumas das dezenas de clássicos que compôs. Sobre ele, Miles Davis teria declarado: “Finalmente encontrei alguém que me fizesse fazer as pazes com esse maldito instrumento que se chama acordeon”.
Morou em Portugal, na França e nos Estados Unidos, onde integrou, como guitarrista, o conjunto da cantora sul-africana Miriam Makeba, com quem criou o clássico arranjo de “Pata Pata”. Voltou ao Brasil em 1975 e estabeleceu parceria com a compositora Glória Gadelha, com quem era casado até a sua morte, vítima de câncer de laringe, neste 15 de dezembro de 2006.

A Bolha

É só curtir
Som Livre
Yes, nós já tínhamos hard rock
Por AARocha

A idéia deste registro surgiu num reencontro de Renato Ladeira e os amigos da extinta banda setentista A Bolha, para gravar uma participação na trilha sonora do filme 1972. Acharam que era pouco só as 2 faixas do filme e deu nisso: (des)ligaram os controles dos caras da Bolha. Taí o bom e velho rock plugado a mil. É hard rock autêntico dos anos 70 no Brasil. Bote nisso 34 anos atrás e vê-se que não era só uma promessa. O CD tem clima de domingueira, uma quebradeira atrás da outra, solos de guitarra legais. É levantar o som e balançar o corpo nos mais de 11 minutos da chapante “Desligaram meus controles”. Os temas são as eternas viagens. Viagens psicodélicas, sunshine, “no terço de um pingo”, viagens sonoras. Ouvir o som da Bolha é voltar ao tempo em que a transgressão era obrigatória para se sentir vivo. É só curtir!

Rock e cinema

1972 enfatiza sonhos e ignora os anos de chumbo
1972 / Dandara Guerra, Rafael Rocha, Bem Gil, Fábio Azevedo, Lúcio Mauro Filho, Toni Tornado / Produção e co-roteiro de Ana Maria Bahiana, direção e roteiro de José Emílio Rondeau
Por AARocha

Sob a direção e roteiro de José Emílio Rondeau, produção e co-roteiro de Ana Maria Bahiana, 1972 se passa no Rio de Janeiro, entre garotos da zona sul e do subúrbio. Em comum: todos gostavam de rock, especialmente dos Stones. Embalados pela explosão do rock carioca, representada pela banda A Bolha, os destinos de Snoopy (Rafael Rocha) e Júlia (Dandara Guerra) se cruzam num dia de junho no aglomerado de uma porta de cinema que projetava Gimme Shelter. Como “costume” na época, a polícia baixa o pau na garotada. Snoppy livra Júlia dos cassetetes e das patas dos cavalos, em seqüência bem coreografada. Mas, há um porém: não se explica o porquê da repressão. O enredo ignora que nesta época vivíamos o pior momento da ditadura militar.
José Emílio Rondeau, já experiente diretor de vídeoclipes, nesta sua primeira incursão no longa-metragem nos apresenta uma história que pretende falar de rock e jornalismo, mas não previlegia nenhum dos dois temas. Não há nenhuma viagem psicodélica, nenhum “baseado aceso”, tão próprio da época, como seria de se esperar. Então, o que é 1972? Trata-se de um filme de amor pós-adolescente que se passa durante os anos de chumbo. Os personagens são despolitizados, Snoopy quer ser inteligente, mas suas ironias são ralas. Talvez haja nisso um mérito: não se reproduziu aqui uma duplinha adolescente que lutou contra a ditadura e que virou estereótipo nos filmes, depois da mini-série Anos rebeldes.
O grande personagem do filme é secundário: o bebum Tião (Toni Tornado, em grande atuação e presença marcante), figura sábia de passado estranho, aos poucos desnudada.
Num filme que quer abordar o rock é estranho o rock internacional estar ausente. A trilha sonora (Renato Ladeira, ex-Bolha) compõe-se só de música brasileira, nada dos Stones! Roberta Flack é citada e dela nada se ouve; numa cena de dor de cotovelo ouvimos o hit Impossível acreditar que perdi você, de Márcio Greick, o que provoca um certo tom de ironia.
Sabemos que, para alguns segundos de música americana a “indústria cultural” deles cobra absurdos 200 mil dólares e os limites dos meios de produção daqui não puderam assumir essa despesa. Problemas deste tipo explicam porque 1972 demorou tanto tempo para ser lançado, afinal está pronto desde 2002.
O filme de Rondeau é importante pelo que deixa de mostrar, por instigar nossa imaginação, do que pelo que efetivamente mostra. Daí ser o cinema uma arte necessária.
A direção é ágil, faz bastante uso dos primeiros planos, valorizando a beleza de Dandara Guerra e prende a atenção. Trata-se de um filme de amor e da busca da afetividade. Nesse sentido, é um enredo envolvente.
Reserve um espaço para as suas emoções, leve um(a) acompanhante e assista numa tarde de domingo.

1972 - trilha sonora original do filme 1972

Trilha sonora original do filme 1972
Universal
Raridades do rock brasileiro da década de 70
Por AARocha

1972 é uma surpresa por revelar que houve vida inteligente no rock brasileiro da década de 70. São raridades históricas. É gratificante ouvir Karma e Os Lobos, um sinal do início do rock progressivo entre nós. Soma e Os Brazões com um rock básico e pesado. Módulo Mil, numa deliciosa levada à Led Zeppelin, talvez uma das únicas bandas de rock que tenha vendido discos na época. “É só curtir” (A Bolha) — proibida em 1972 — e “As cheias do luar” (Vide Bula) — canção-tema do filme são peças rearranjadas pelos integrantes de A Bolha em 2002 e 2005, com o mesmo espírito de 1972, e mostram o que é o bom e velho rock. O repertório traz ainda Dom Salvador & Abolição — mais cultuado fora do Brasil — numa levada black e Egberto Gismonti com uma sonoridade jazz. Completa o CD, hits da década de 70 com Caetano e Gal, em um iê-iê-iê romântico; Sá, Rodrix e Guarabira, em deliciosa sonoridade; Márcio Greick (que aqui até soa moderno); Rita Lee, Novos Baianos, Gilberto Gil e Toni Tornado, numa black music que viria a crescer bastante como tendência tempos depois.

Rogério Duprat, 1932-2006

A morte do irreverente maestro tropicalista deixa a música brasileira mais careta
Por AARocha

Rogério Duprat já foi chamado de “o George Martin da música brasileira”. Mas se o produtor inglês “só” criou o som dos Beatles, o maestro carioca fez muito mais. Já seria muito se ele tivesse apenas conhecido os meninos dos Mutantes (Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee) e criado os arranjos de obras clássicas como Os Mutantes, Tropicália ou Panis et Circensis (ambos de 1968) e A Divina Comédia (1971). Mas some-se: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Nara Leão, Chico Buarque, Erasmo Carlos, Walter Franco, Jorge Ben e Lulu Santos, todos são devedores do caldeirão sonoro do mago. É só lembrar do arranjo vanguardista para “Domingo no Parque” (Gilberto Gil) e dos arranjos “construídos” para “Construção” e “Deus Lhe Pague” (Chico Buarque) e tem-se a dimensão de sua figura.
Sem Duprat, a música brasileira não teria evoluído da bossa nova e da jovem guarda em apenas um ano e meio. E sabe-se que a soma destes dois gêneros não resultaria em filhote algum. Mas existiu Rogério Duprat e um movimento chamado Tropicalismo. Ainda bem que houve um tempo em que as pessoas se dispunham a se encontrar - tempo em que a Avenida São Luís, em São Paulo, havia cedido seus grandes apartamentos da burguesia decadente para os artistas emigrados da Bahia. Chegando na capital paulista, os baianos foram morar perto de onde acontecia o burburinho da noite paulistana na década de 60. São Paulo ainda era “pequena”: a Avenida Paulista ainda não era o antro da oligarquia financeira.
Caetano e Gil tinham passado pelo Rio de Janeiro e percebido que as oportunidades estavam na São Paulo desvairada. Caetano já havia guardado a mala que cheirava mal e fedia em um canto do guarda-roupa e, entre idas e vindas para o Rio, Salvador e São Paulo e longos papos pelo bairro de Perdizes, tudo parecia “divino e maravilhoso”. Mas nem tanto: em 1967, passeata dos cem mil; em 1968, AI5; prisão, exílio...
E o que Rogério Duprat teve a ver com o Tropicalismo? Gil conheceu o maestro Júlio Medalha, que botou o grupo em contato com Duprat, que trouxe Os Mutantes. Duprat fez o arranjo de “Domingo no Parque” e encaixou os meninos na jogada. O grupo cresceu, era o início de 1968. Caetano compõe o que viria a ser “Tropicália” — nome sugerido pelo cineasta Luís Carlos Barreto, cuja letra é uma colagem de temas arcaicos e modernos — uma representação figurada do Brasil (“Eu organizo o movimento, eu oriento o carnaval”) - e o que faziam passou a ter nome. Coube a Nelson Motta publicar no jornal Última Hora um artigo intitulado ‘A Cruzada Tropicalista’, que anunciava que um grupo de músicos, cineastas e intelectuais brasileiros fundara um movimento cultural com a ambição de alcance internacional.
No movimento, “o avesso do avesso do avesso” da MPB vigente, estava Caetano, Gil, Tom Zé, Gal Costa, Torquato Neto, Capinam, Os Mutantes, Damiano Cozzella, Júlio Medaglia, Rogério Duprat e Rogério Duarte. A proposta era uma intervenção crítica no cenário cultural brasileiro, ressaltando os contrastes, casando o arcaico e o moderno, o nacional e o estrangeiro, as culturas de elite e de massa, cinema, rádio, teatro e televisão. Considerava que na música tudo era importante; abarcava samba, bolero, frevo, música de vanguarda, iê-iê-iê, rock internacional e “discriminalizou” o uso da guitarra. A aproximação com a poesia concreta paulista mereceu apoio crítico de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. O embrião do movimento remonta a discussões entre Caetano, Gil, Bethânia, Torquato, Rogério Duarte, ainda na Bahia, sobre questões como a necessidade da universalização da música brasileira, ampliando as conquistas da bossa nova, a qual já tinha estourado lá fora. Caetano, alertado por Bethânia, prestava atenção à modernidade de Roberto Carlos, o que viria a aparecer em músicas como “Baby” (“ouvir aquela canção do Roberto”) e em “Tropicália” (“Não disse nada do modelo do meu terno, que tudo mais vá pro inferno, meu bem”). O Tropicalismo propunha redimensionar, abrir, rearranjar. Aí entra o mago-arranjador Rogério Duprat. Carioca, nascido em 1932, deu seus primeiros passos na música ainda jovem, tocando “de ouvido” cavaco, violão e gaita de boca. Em 1950, começou a estudar violoncelo. Mudou-se para a São Paulo em 1955, onde participou com destaque da Orquestra Sinfônica Municipal. Foi um dos fundadores e diretores da Orquestra de Câmara de São Paulo. Criou o movimento de música erudita “Música Nova”, em 1961, que incorporava atitudes experimentais à execução das peças. Passou um ano na Alemanha, tornando-se colega de Frank Zappa, com quem assistiu às aulas do mestre Stockhausen. Já no Brasil, em 1963, foi arranjador e regente da orquestra da TV Excelsior. No ano seguinte, começou a compor trilhas para cinema, sendo premiado com os filmes “Noite Vazia”, “Corpo Ardente” e “As Cariocas”. Mas para ele, isso não bastava: dizendo-se cansado da caretice das orquestras e querendo sair desse círculo, aproximou-se da música popular, onde pôs em prática suas experimentações com o grupo tropicalista e fora dele, radicalizando a idéia de uma orquestração moderna no Brasil. Assinou arranjos ousados, pontuados de erudição e criatividade, misturando sons de tudo o que parecesse moderno e irônico.
Nas décadas de 70 e 80, Duprat montou um estúdio para produção de jingles e trilhas para o cinema e televisão. Em 1987, ganhou um prêmio Kikito no Festival de Gramado, com a trilha de A Marvada Carne (recusou porque a música apareceu desfigurada), uma das quase 50 trilhas que compôs.
Mesmo sob a proteção dos deuses da música, o volume do som dos estúdios o deixou quase surdo, o que o obrigou a exilar-se num sítio em Itapecerica da Serra (SP), trabalhando com marcenaria e praticando ioga. E o mago do som passou a ser um “mestre zen”.
Porém, “seu coração balança a um samba de tamborim, emite acordes dissonantes”, e em 1990 voltou à ativa, compondo arranjos para Lulu Santos e Rita Lee. Com sua morte neste outubro de 2006, devido a complicações decorrentes de um câncer na bexiga, a música brasileira perde uma referência e a possibilidade de ser menos careta.

Publicado originalmente na edição n. 2 da Rolling Stone brasileira, com permissão dos editores.

querido antonio: que gosto ler o seu texto sobre rogério duprat. o seu caráter contextualizador ilumina sobremaneira a mente dos menos esclarecidos. por meio de duprat você passeou de maneira iluminadora pela música brasileira nos seus momentos mais decisivos. parabéns e espero que continue contribuindo dessa forma para a nossa cultura. estou com saudades e com vontade de prosear com você. abração do amigo, Aguinaldo Gonçalves