23.1.07

Porta retrato

Por AARocha
Lembrei-me de uma vez: eu, menino de 8 anos, estudava numa escola primária de bairro. Próximo do fim de ano, a professora começou a armar uma exposição com os trabalhos dos aluninhos. A mim sobrou fazer barquinhos de papel. Ela falou: mas precisa colocar o barquinho numa coisa que pareça água. Precisamos de um vidro. 'Fessora, tem um vidro em casa! Você mora perto daqui? Ali embaixo, 10 minutos. Então, vá buscar, sua mãe empresta? Esbaforido cheguei em casa no meio da tarde. Minha mãe quase desmaiou de susto. "Menino, qu’ocê tá fazeno aqui a essa hora?" Nada não mãe. Aconteceu alguma coisa? Nada não mãe, e adentrei o quarto dela. Na penteadeira tinha um porta retratos com o retrato da minha avó (um xodó da minha mãe). Desmontei, peguei o vidro e escondi debaixo da camisa. Saí correndo de volta pra escola sem minha mãe me ver. (O que a minha mãe pensou com a minha presença-ausência instantânea é coisa que nem hoje consigo imaginar). Quanto mais eu corria, mais aquela escola ficava longe. Tinha que atravessar um pontilhão, embaixo passava a linha do trem. Aí "garrei" a correr pra alcançar logo esse pontilhão. Depois dele, a escola ficava logo ali. Quanto mais corria, mais queria correr. E aquele pontilhão não chegava nunca. Afinal chegou. E eu correndo. Tropecei no calcanhar, caí (hoje me lembro que foi em câmara lenta), tentei proteger o vidro que se estilhaçou. Cortei a mão, sangrei, ralei o joelho, ralei o cotovelo. Puta que pariu! a escola já estava ali. Tinha que entrar. Entrei com a mão no bolso, o sangue escorria pela perna. 'Fessora, não tem mais vidro! Que aconteceu, menino? Nada não 'fessora. Comecei a copiar alguma coisa que estava na lousa. Meu Deus, o que eu estava fazendo ali?, se pudesse sumir...! Vertigem e sangue empapando o meu caderno Bandeirante. Não sei como sobrevivi a esse dia!
Acho que, para mim, esse episódio foi um rito de passagem para algum lugar que até hoje não sei precisar. E também não me lembro se eu contei pra minha mãe que eu quebrei o xodó dela. Não me lembro, apaguei... só me lembro do que relatei. Lembro-me de uma vez, anos depois, ela lamentar a ausência do vidro que ela chamava de “porta retrato”.

13.1.07

Era um garoto que como eu amava os Beatles e a Rolling Stone

Um leitor relembra a saga da célebre edição dos anos 70 da Rolling Stone brasileira, que revolucionou a imprensa cultural do país em 36 edições
Por AARocha

O tempo era outro. Exatamente há 35 anos, a primeira versão da Rolling Stone era lançada no Brasil. Durou dois verões, exatas 36 edições. Apesar da ditadura em que vivíamos, a revista divulgava assuntos que “faziam a nossa cabeça”. Seus 30 mil leitores, se tanto (eu entre eles), sentiam-se vingados da gorilada que queria fazer o Brasil marchar em ordem unida. Não vivíamos apenas de sexo, drogas, e rock'n'roll, pode crer. Naqueles tempos, a Rolling Stone ensinava uma nova maneira de falar, de escrever, de pensar e se relacionar com tudo. Esta é uma memória daquele tempo, apesar dos pesares, feliz. Afinal, “eu já estou com o pé nessa estrada...”
A década de 70 começou em 68 ou em 69? Imprecisão histórica? Talvez a imprecisão seja a tônica deste texto, pois ele caminha num fio de navalha. E nada mais traiçoeiro que registro embaçado, feito a partir da lembrança.
Maio de 68, as barricadas de Paris: a juventude estudantil e o operariado saem às ruas enfrentando o poder estabelecido. No Brasil: barra pesada, ditadura. Como numa onda, a juventude pensa criticamente. Passeata dos Cem Mil, congressos estudantis, prisões de estudantes e trabalhadores. Em 1969, nada será como antes. Se até 1968 a busca de um novo modo de viver considerava a mudança na forma de se fazer política, em 1969 isso já não estava no horizonte. A arte passou a moldar o comportamento. Buscou-se um modo de viver mais simples, mais próximo da natureza, longe da máquina avassaladora da tecnologia, que naquela época ainda engatinhava.
Naquele ano, Peter Fonda e Dennis Hopper filmaram Easy Rider – Sem Destino, aventura de dois jovens americanos que em suas motocicletas saem em busca da liberdade. Apesar do final deprimente (os dois servem de alvo para a pontaria de rancheiros), ganhou ovação em Cannes e recebeu indicações para o Oscar nas categorias de Melhor Ator Coadjuvante (Jack Nicholson) e Melhor Roteiro Original. O filme fazia o elogio da liberdade, com trilha sonora da pesada, como dizíamos na época: Steppenwolf, Jimi Hendrix, The Byrds, The Band, Bob Dylan. Em Sem Destino, assim como na sociedade americana, a violência já se fazia presente: cocaína e armas. Muitos de nós, meninos ingênuos, talvez não quiséssemos enxergar.Em Bethel, perto de Nova York, numa fazenda, acontece o festival de Woodstok, de 15 a 17 de agosto. Público esperado: 50 mil pessoas. Comparecimento: 500 mil. Foi filmado e lançado em 1970, como Woodstock – Three Days of Peace & Music. O festival foi um big evento comercial (mas ninguém queria saber), com a presença de vinte bandas e artistas solos, entre eles, Jimi Hendrix, The Who, Creedence, Joe Cocker, Richie Havens, Santana, Joan Baez.
Em 6 de dezembro, os Rolling Stones vão a Altamont (Califórnia) para uma apresentação ao ar livre. Antes de subirem ao palco, já havia problemas. A “segurança” do show estava sob a responsabilidade dos Hell's Angels de São Francisco, uma gangue de motoqueiros anti-flower power, armados com tacos de baseball. Qualquer maluquinho que tentasse subir ao palco era agredido. Durante a apresentação do Jefferson Airplane, que antecedeu os Stones, muitos já haviam sido carregados para atendimento nos postos da Cruz Vermelha, em bem maior número que os médicos podiam dar conta. Quando os Stones entraram, a multidão ficou histérica, e os Hell's Angels entraram em ação. Durante a execução de “Under My Thumb”, um jovem negro, Meredith Hunter, foi assassinado com uma punhalada nas costas. Mick Jagger percebeu alguma coisa estranha acontecendo, mas não sabia exatamente o quê.
No dia seguinte, os Stones descobriram que quatro pessoas haviam morrido. Há versões de que Meredith foi agredido pelos Angels por estar acompanhado de uma loira, mas soube-se depois que ele portava um revólver. O assassino, Alan Passaro, foi julgado e inocentado por legítima defesa. O emblemático acontecimento está registrado no filme Gimme Shelter. Convenhamos, havia algo de podre naquele reino: armas num concerto de rock? Em plena era flower power! “The Rolling Stones, disaster at Altamont: Let it bleed”, dizia a capa da edição 50 da Rolling Stone norte-americana, datada de 21 de janeiro de 1970. Fazer um paralelo entre a violência em Sem Destino e o concerto de Altamont não é nenhum exagero, apesar do rock. Talvez nossa ingenuidade não permitisse.
Em 1968, a vida no interior de São Paulo era uma modorra. Nada de mais acontecia. Música, só pelo rádio, com seus chiados AM. Beatles, muito Beatles, The Mamas & The Papas e sucessos comerciais. E tome Jovem Guarda. “Menina linda eu te adoro, oh! Menina pura como a flor, sua boneca vai quebrar, mas viverá o nosso amor” (versão de “I Should Have Known Better”, de Lennon e McCartney), e TV na casa do vizinho, aqueles programas de sábado à tarde. Ecos da violência política, não sei como, ficávamos sabendo. “Se o Marighela aparecer por aqui pedindo ajuda, eu o escondo, nem que seja no paiol dos cabritos”, pensava. Mas ele nunca apareceu. Colegial, teatro amador, viagens pelas cidades da redondeza, paqueras, papos, gamação, sexo (mas como fazê-lo?). Ninguém dava pra gente, só prostituta em rendez-vous. Namorada? Nem pensar, só mão-boba e olha lá. Perigava a menina querer fazer você prometer casamento. Comigo aconteceu e o namoro acabou.
Não sei como, em junho de 1969, apareceu nas mãos do meu irmão Abel um exemplar do número 15 de O Pasquim. Trazia uma entrevista com Elis Regina. Senti alguma coisa diferente naquelas páginas. Humor tipicamente carioca-ipanemense, se bem que eu nem sabia o que era Ipanema naquela época. Em novembro, na edição 22, apareceu a famosa entrevista “asteriscada” com a nossa musa Leila Diniz. Bonita, gostosa, linguaruda, Leila falou sobre homens, sexo, comportamento, censura... Entre outras coisas, ela dizia que “trepava de manhã, de tarde e de noite”. Não tinha como não amar uma mulher daquelas. Todos os palavrões, em mais um lance de humor, mas nem tanto, foram substituídos por asteriscos. Apesar de alguns trechos ilegíveis, a entrevista motivou a criação da Lei de Censura Prévia, apelidada de Decreto Leila Diniz. Quando Leila morreu num desastre de avião, em 14 de julho de 1972, aos vinte e sete anos, no auge da fama e beleza, ao saber da notícia, me tranquei no fétido banheiro da gráfica onde trabalhava e chorei.
De O Pasquim, o importante é destacar um jornalista em especial: Luiz Carlos Maciel, também dramaturgo, roteirista de cinema, filósofo, poeta e escritor. “Em 1969 estávamos mais ou menos ao Deus-dará. O sonho havia acabado, não se tinha o que fazer ou para onde ir, formava-se o vazio histórico e existencial onde medraram a luta clandestina e o desbunde...”, disse ele em seu livro Os anos 60. O sonho duraria mais dois anos, tempo suficiente para Maciel nos colocar em contato com assuntos e temas inéditos. Sua coluna Underground, de 1969 a 1971, divulgou os movimentos alternativos que eclodiam no mundo e a importância que isso tinha. Com formação de filósofo, Maciel podia entender e justificar as razões daquelas manifestações. Temas como Romantismo, Surrealismo, Marxismo e Existencialismo sartreano eram usados para explicar o hinduísmo, o embate Oriente-Ocidente, o flower power, a vida em comunidade, a revolução sexual, o desbunde hippie, a metafísica, os shows de rock, a contestação, a antipsiquiatria, a antipsicanálise, as idéias antenadas com pensamentos de uma “nova era”, a nova percepção da realidade por meio das drogas (maconha, peiote, mescalina e LSD), a bruxaria, a era de Aquarius (que parece, ainda não chegou) e a literatura da beat generation beat (Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Gregory Corso, William Burroughs).
Idéias de pensadores “sérios” como Reich, Allan Watts, Timothy Leary, Norman O’Brown, Marcuse eram constantes na coluna de Luiz Carlos Maciel, assuntos denominados genericamente de “contracultura”. Maciel devia se sentir muito só naquele ambiente, já que contracultura no Brasil soava como algo exótico, uma curiosidade americana, subjetiva e individualista para os ideólogos da esquerda tradicional. Diz Maciel: “A coluna Underground sumiu do Pasquim quando Tarso de Castro foi alijado do cargo de editor chefe e substituído por seu desafeto Millôr Fernandes. Millôr detestava essa história toda de contracultura, cabeludos, rock e, principalmente, baianos tropicalistas. O Underground foi descartado e eles fizeram até uma campanha contra os 'baihunos', que era como chamavam Caetano e Gil. Os caras do Pasquim eram muito conservadores, embora desaforados. O único sensível à nova visão era o Tarso de Castro. Foi ele, aliás, quem inventou a coluna Underground, porque sabia que eu me interessava pelo assunto”. Reflexão: se 1968 foi o clímax do pensamento crítico, 1969 inaugura o desbunde, uma negação dessa rigidez.
Fazer 17 anos em 1970, naquele interior perdido no mapa, não era mole. Imagino que aquela urbe só existisse porque por lá passa uma estrada importante. E as cidades crescem à beira de uma estrada. E a estrada virou uma fixação. “Adeus, vou pra não voltar”. Já que não dava pra sair, ficava. "Caminhando contra o vento sem lenço e sem documento..." Até o dia em que um cinema de uma cidade próxima anunciou a projeção de Woodstock. Perco o trem, volto a pé, mas não posso deixar de ver. E o que vi naquelas três horas foi veneração, missa leiga, ritual orgiástico, revelação, pura epifania! O cinema quase vazio era pequeno para tanta felicidade. Fiz uma coisa boba: anotei a seqüência das bandas, querendo segurar aquele momento para sempre, sem me dar conta de que poderia rever o quanto quisesse. Não tinha consciência de que aquilo já era História. Finalmente o rock, o flower power se manifestando na minha cara sem meias tintas. O rock existia, não era mais citação em jornal. Estava ali em som estéreo e em cores.
Se a coluna Underground deixou de existir, criou-se outro espaço de maior tamanho e com dedicação exclusiva. Nasce Flor do Mal, mais uma de Maciel, agora com Rogério Duarte, Tite de Lemos e Torquato Mendonça. Todo “composto” à mão, trazia na capa, emoldurada com vinheta simulando espinhos, um texto de Baudelaire sobre a imprensa. No centro, a imagem de uma garota negra sorrindo. Maciel declarou que “na Flor podia se fazer o que desse na veneta”. Foi o primeiro jornal totalmente contracultural brasileiro e o mais lembrado. Durou cinco números, mas em novembro de 1971, um sabiá me cantou que Luiz Carlos Maciel iria liderar uma nova aventura: a Rolling Stone americana seria publicada por aqui.
A aventura no Brasil começou com um físico nuclear inglês, Mick Killingbeck, que após visitar o país a trabalho, juntou alguns amigos (Stephen Banks, Stephane Gilles Escate e Theodore George), adquiriu os direitos de publicação da Rolling Stone por aqui e convidou Maciel a entrar no barco. “Mick Killingbeck foi quem inventou aquela Rolling Stone brasileira. Foi ele quem negociou os direitos da Rolling Stone americana e, depois de sondar o mercado, me escolheu pra editar a versão brasileira por causa de minha coluna Underground no Pasquim”, lembra Maciel. Os verões de 1971 e 1972 foram tempos de muita alegria para todos nós. E a Rolling Stone esteve presente nele durante 14 meses. “Ser o editor de uma revista era um sonho meu que realizei. Acho até que tinha jeito pra coisa e lamento que não tenha tido a oportunidade de repetir a dose. Foi uma das experiências melhores e mais úteis, um dos períodos mais felizes da minha vida”, disse Maciel.
A edição zero da Rolling Stone foi lançada em novembro de 1971. Entre os destaques, Gal Costa na capa e no miolo e uma matéria sobre uma onda de new religion que acontecia em San Francisco. Trinta e seis edições foram publicadas em menos de um ano, de 1º de fevereiro de 1972 a 5 de janeiro de 1973. Desde “Caetano está entre nós” até “Brasil 73: Nova Consciência”. 13 meses, dois verões de contracultura, rock, toque e notas ligadas. Nesse período, ficamos sabendo de tudo o que acontecia no mundo underground: comportamento, lançamentos de discos, concertos, bandas novas, teatro, literatura, cinema, o que iria ou não dar certo. Aprendemos uma forma mais descontraída de pensar, escrever e falar. Transávamos tudo, sendo que nesse tempo transar significava fazer tudo, se relacionar com tudo, não tinha só o sentido sexual. Ler a Rolling Stone era estar antenado com o mundo, não importava onde você estivesse. Aliás, quanto mais longe do centro cosmopolita, melhor. Você podia olhar para o céu e ver as estrelas, sentir o cheiro do sereno, e se tivesse uma ajuda alucinógena, viajar. E essa viagem poderia se dar sem sair do lugar.Hoje, o racionalismo não permite entender aquela proposta, mas naquele verão, não havia dúvidas. A cena musical que começou com o fantástico disco de Gal Costa (A todo vapor) terminou com o lançamento de um encontro antológico registrado ao vivo: Chico Buarque e Caetano Veloso juntos. Nada poderia ser melhor. “1972 acabou sendo um ano de total redenção da música brasileira”, dizia um dos editoriais da Rolling Stone. Mas, desde o número 34, algo de estranho estava acontecendo. “A Rolling Stone americana cobrava royalties que nunca foram pagos. Depois de não sei quantos meses, eles pararam de nos mandar material – fotos e textos que vinham todas as quinzenas. A partir daí, tínhamos que simplesmente roubar – o que não nos incomodava, pois éramos alternativos e acreditávamos na propriedade coletiva de tudo. Por idéia do Lapi (ilustrador e editor de arte) ou do Joel Macedo ou de ambos, a confissão "Pirata" passou a aparecer abaixo do logotipo. A pirataria era um valor positivo na contracultura”, diz Maciel.
Os editores pediam aos leitores que tivessem paciência, como dizia a nota “Rolling rolando”, publicada na edição 36: “Mais uma vez fomos obrigados a mudar o dia da saída do Rolling Stone nas bancas. Vamos ver se dá pra segurar. Se não der, vocês – please, please, – segurem por nós mais uma vez”. No mesmo número, um comunicado da Phonogram, assinado por André Midani, dizia: “A quem interessar possa. Declaramos que temos o maior interesse em que o trabalho desenvolvido pela revista Rolling Stone, no ano de 1972, prossiga com a mesma ênfase durante o ano de 1973. Sendo a única revista especializada na rock music e na pop music, consideramos indispensável que as companhias gravadoras e as indústrias eletrônicas dêem o devido apoio a esse empreendimento”.
Parecia um réquiem. Seria o fim? Renovei minha assinatura e escrevi uma carta, não me lembro bem o conteúdo, tentando dar uma força: “Oi, amizades, a revista não pode deixar de existir, estou aqui, não vivo sem ela, sou leitor, gosto, divulgo”. Esta carta acompanhada de uma foto minha [acima], na beira de uma estrada, com mochila nas costas, nunca foi publicada. Aquele foi mesmo o último número da Rolling Stone no Brasil. Felizmente, a pedra continuou rolando até hoje.

Publicado originalmente na edição n. 1 da Rolling Stone brasileira, com permissão dos editores.

10.1.07

Colidouescapo

Augusto de Campos
Amauta Editorial
Ou a poesia quebra a cara ou sai dessa mais rica

Pense na proximidade destes sons: colidouescapo e caleidoscópio. Lembra alguma coisa? Esta é a “invenção” de Augusto de Campos e seu irônico Colidouescapo. O “livro” — que repete o projeto gráfico de 1971, vem encapado em dobradura de papel-cartão e miolo em folhas soltas dobradas — permite que a poesia seja reconstruída pelo leitor (jogo lúdico e função poética) formando palavras, quase sempre estranhas. Mas não tente encontrá-las no dicionário! O que se busca aqui é o estranhamento e novos paradigmas. Alguém sabe o significado de restento, exiscontro (tento novamente?, existe encontro? ou ex-encontro?)? Augusto de Campos, um dos expoentes do Concretismo (junto com o irmão Haroldo e Décio Pignatari), leva a poesia a sua forma mais sintética e propõe que o leitor faça a sua “despoesia”.
Revelador aqui é o poema central ser a palavra desesprezo. Desprezo (não prezo a) pela poesia formal, descritiva, parnasiana. A experiência nos remete à morte da poesia, mas não é. Colideouespaco colidiu e escapou: a poesia permanece.

The Rolling Stones - Rock Files

Truth and Lies
ST2 Vídeo
Nem tudo é verdade
Por AARocha

Este DVD traz a história da “maior banda do planeta” sobre a ótica da sensacionalismo e de como se inventou o mito: Beatles = certinhos, Stones = depravados. Cobre o período de 1962-2002, as diferentes formações, prisões e escândalos que envolveram os Stones, e conclui melancolicamente: os rebeldes do rock de ontem são o sistema de hoje. Inclui cenas de Londres dos ‘60 que olhos fetichistas vão querer rever.

Sivuca, 1930-2006

Mestre Sivuca se foi
Por AARocha

Nascido Severino Dias de Oliveira, em Itabaiana (Paraíba), em 1930, Sivuca já tinha ouvido absoluto desde menino: durante festas na cidade, quando a banda começava as suas retretas, ele tampava os ouvidos para não ouvir a desafinação. Aos 9 anos começou a tocar sanfona, flauta e violão e iniciou a trajetória para tornar-se um dos mais celebrados multi-instrumentistas brasileiros de todos os tempos. “João e Maria” (parceria com Chico Buarque), “Feira de Mangaio” (com Gloria Gadelha) e “No Tempo dos Quintais” (com Paulinho Tapajós) são algumas das dezenas de clássicos que compôs. Sobre ele, Miles Davis teria declarado: “Finalmente encontrei alguém que me fizesse fazer as pazes com esse maldito instrumento que se chama acordeon”.
Morou em Portugal, na França e nos Estados Unidos, onde integrou, como guitarrista, o conjunto da cantora sul-africana Miriam Makeba, com quem criou o clássico arranjo de “Pata Pata”. Voltou ao Brasil em 1975 e estabeleceu parceria com a compositora Glória Gadelha, com quem era casado até a sua morte, vítima de câncer de laringe, neste 15 de dezembro de 2006.

A Bolha

É só curtir
Som Livre
Yes, nós já tínhamos hard rock
Por AARocha

A idéia deste registro surgiu num reencontro de Renato Ladeira e os amigos da extinta banda setentista A Bolha, para gravar uma participação na trilha sonora do filme 1972. Acharam que era pouco só as 2 faixas do filme e deu nisso: (des)ligaram os controles dos caras da Bolha. Taí o bom e velho rock plugado a mil. É hard rock autêntico dos anos 70 no Brasil. Bote nisso 34 anos atrás e vê-se que não era só uma promessa. O CD tem clima de domingueira, uma quebradeira atrás da outra, solos de guitarra legais. É levantar o som e balançar o corpo nos mais de 11 minutos da chapante “Desligaram meus controles”. Os temas são as eternas viagens. Viagens psicodélicas, sunshine, “no terço de um pingo”, viagens sonoras. Ouvir o som da Bolha é voltar ao tempo em que a transgressão era obrigatória para se sentir vivo. É só curtir!

Rock e cinema

1972 enfatiza sonhos e ignora os anos de chumbo
1972 / Dandara Guerra, Rafael Rocha, Bem Gil, Fábio Azevedo, Lúcio Mauro Filho, Toni Tornado / Produção e co-roteiro de Ana Maria Bahiana, direção e roteiro de José Emílio Rondeau
Por AARocha

Sob a direção e roteiro de José Emílio Rondeau, produção e co-roteiro de Ana Maria Bahiana, 1972 se passa no Rio de Janeiro, entre garotos da zona sul e do subúrbio. Em comum: todos gostavam de rock, especialmente dos Stones. Embalados pela explosão do rock carioca, representada pela banda A Bolha, os destinos de Snoopy (Rafael Rocha) e Júlia (Dandara Guerra) se cruzam num dia de junho no aglomerado de uma porta de cinema que projetava Gimme Shelter. Como “costume” na época, a polícia baixa o pau na garotada. Snoppy livra Júlia dos cassetetes e das patas dos cavalos, em seqüência bem coreografada. Mas, há um porém: não se explica o porquê da repressão. O enredo ignora que nesta época vivíamos o pior momento da ditadura militar.
José Emílio Rondeau, já experiente diretor de vídeoclipes, nesta sua primeira incursão no longa-metragem nos apresenta uma história que pretende falar de rock e jornalismo, mas não previlegia nenhum dos dois temas. Não há nenhuma viagem psicodélica, nenhum “baseado aceso”, tão próprio da época, como seria de se esperar. Então, o que é 1972? Trata-se de um filme de amor pós-adolescente que se passa durante os anos de chumbo. Os personagens são despolitizados, Snoopy quer ser inteligente, mas suas ironias são ralas. Talvez haja nisso um mérito: não se reproduziu aqui uma duplinha adolescente que lutou contra a ditadura e que virou estereótipo nos filmes, depois da mini-série Anos rebeldes.
O grande personagem do filme é secundário: o bebum Tião (Toni Tornado, em grande atuação e presença marcante), figura sábia de passado estranho, aos poucos desnudada.
Num filme que quer abordar o rock é estranho o rock internacional estar ausente. A trilha sonora (Renato Ladeira, ex-Bolha) compõe-se só de música brasileira, nada dos Stones! Roberta Flack é citada e dela nada se ouve; numa cena de dor de cotovelo ouvimos o hit Impossível acreditar que perdi você, de Márcio Greick, o que provoca um certo tom de ironia.
Sabemos que, para alguns segundos de música americana a “indústria cultural” deles cobra absurdos 200 mil dólares e os limites dos meios de produção daqui não puderam assumir essa despesa. Problemas deste tipo explicam porque 1972 demorou tanto tempo para ser lançado, afinal está pronto desde 2002.
O filme de Rondeau é importante pelo que deixa de mostrar, por instigar nossa imaginação, do que pelo que efetivamente mostra. Daí ser o cinema uma arte necessária.
A direção é ágil, faz bastante uso dos primeiros planos, valorizando a beleza de Dandara Guerra e prende a atenção. Trata-se de um filme de amor e da busca da afetividade. Nesse sentido, é um enredo envolvente.
Reserve um espaço para as suas emoções, leve um(a) acompanhante e assista numa tarde de domingo.

1972 - trilha sonora original do filme 1972

Trilha sonora original do filme 1972
Universal
Raridades do rock brasileiro da década de 70
Por AARocha

1972 é uma surpresa por revelar que houve vida inteligente no rock brasileiro da década de 70. São raridades históricas. É gratificante ouvir Karma e Os Lobos, um sinal do início do rock progressivo entre nós. Soma e Os Brazões com um rock básico e pesado. Módulo Mil, numa deliciosa levada à Led Zeppelin, talvez uma das únicas bandas de rock que tenha vendido discos na época. “É só curtir” (A Bolha) — proibida em 1972 — e “As cheias do luar” (Vide Bula) — canção-tema do filme são peças rearranjadas pelos integrantes de A Bolha em 2002 e 2005, com o mesmo espírito de 1972, e mostram o que é o bom e velho rock. O repertório traz ainda Dom Salvador & Abolição — mais cultuado fora do Brasil — numa levada black e Egberto Gismonti com uma sonoridade jazz. Completa o CD, hits da década de 70 com Caetano e Gal, em um iê-iê-iê romântico; Sá, Rodrix e Guarabira, em deliciosa sonoridade; Márcio Greick (que aqui até soa moderno); Rita Lee, Novos Baianos, Gilberto Gil e Toni Tornado, numa black music que viria a crescer bastante como tendência tempos depois.

Rogério Duprat, 1932-2006

A morte do irreverente maestro tropicalista deixa a música brasileira mais careta
Por AARocha

Rogério Duprat já foi chamado de “o George Martin da música brasileira”. Mas se o produtor inglês “só” criou o som dos Beatles, o maestro carioca fez muito mais. Já seria muito se ele tivesse apenas conhecido os meninos dos Mutantes (Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee) e criado os arranjos de obras clássicas como Os Mutantes, Tropicália ou Panis et Circensis (ambos de 1968) e A Divina Comédia (1971). Mas some-se: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Nara Leão, Chico Buarque, Erasmo Carlos, Walter Franco, Jorge Ben e Lulu Santos, todos são devedores do caldeirão sonoro do mago. É só lembrar do arranjo vanguardista para “Domingo no Parque” (Gilberto Gil) e dos arranjos “construídos” para “Construção” e “Deus Lhe Pague” (Chico Buarque) e tem-se a dimensão de sua figura.
Sem Duprat, a música brasileira não teria evoluído da bossa nova e da jovem guarda em apenas um ano e meio. E sabe-se que a soma destes dois gêneros não resultaria em filhote algum. Mas existiu Rogério Duprat e um movimento chamado Tropicalismo. Ainda bem que houve um tempo em que as pessoas se dispunham a se encontrar - tempo em que a Avenida São Luís, em São Paulo, havia cedido seus grandes apartamentos da burguesia decadente para os artistas emigrados da Bahia. Chegando na capital paulista, os baianos foram morar perto de onde acontecia o burburinho da noite paulistana na década de 60. São Paulo ainda era “pequena”: a Avenida Paulista ainda não era o antro da oligarquia financeira.
Caetano e Gil tinham passado pelo Rio de Janeiro e percebido que as oportunidades estavam na São Paulo desvairada. Caetano já havia guardado a mala que cheirava mal e fedia em um canto do guarda-roupa e, entre idas e vindas para o Rio, Salvador e São Paulo e longos papos pelo bairro de Perdizes, tudo parecia “divino e maravilhoso”. Mas nem tanto: em 1967, passeata dos cem mil; em 1968, AI5; prisão, exílio...
E o que Rogério Duprat teve a ver com o Tropicalismo? Gil conheceu o maestro Júlio Medalha, que botou o grupo em contato com Duprat, que trouxe Os Mutantes. Duprat fez o arranjo de “Domingo no Parque” e encaixou os meninos na jogada. O grupo cresceu, era o início de 1968. Caetano compõe o que viria a ser “Tropicália” — nome sugerido pelo cineasta Luís Carlos Barreto, cuja letra é uma colagem de temas arcaicos e modernos — uma representação figurada do Brasil (“Eu organizo o movimento, eu oriento o carnaval”) - e o que faziam passou a ter nome. Coube a Nelson Motta publicar no jornal Última Hora um artigo intitulado ‘A Cruzada Tropicalista’, que anunciava que um grupo de músicos, cineastas e intelectuais brasileiros fundara um movimento cultural com a ambição de alcance internacional.
No movimento, “o avesso do avesso do avesso” da MPB vigente, estava Caetano, Gil, Tom Zé, Gal Costa, Torquato Neto, Capinam, Os Mutantes, Damiano Cozzella, Júlio Medaglia, Rogério Duprat e Rogério Duarte. A proposta era uma intervenção crítica no cenário cultural brasileiro, ressaltando os contrastes, casando o arcaico e o moderno, o nacional e o estrangeiro, as culturas de elite e de massa, cinema, rádio, teatro e televisão. Considerava que na música tudo era importante; abarcava samba, bolero, frevo, música de vanguarda, iê-iê-iê, rock internacional e “discriminalizou” o uso da guitarra. A aproximação com a poesia concreta paulista mereceu apoio crítico de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. O embrião do movimento remonta a discussões entre Caetano, Gil, Bethânia, Torquato, Rogério Duarte, ainda na Bahia, sobre questões como a necessidade da universalização da música brasileira, ampliando as conquistas da bossa nova, a qual já tinha estourado lá fora. Caetano, alertado por Bethânia, prestava atenção à modernidade de Roberto Carlos, o que viria a aparecer em músicas como “Baby” (“ouvir aquela canção do Roberto”) e em “Tropicália” (“Não disse nada do modelo do meu terno, que tudo mais vá pro inferno, meu bem”). O Tropicalismo propunha redimensionar, abrir, rearranjar. Aí entra o mago-arranjador Rogério Duprat. Carioca, nascido em 1932, deu seus primeiros passos na música ainda jovem, tocando “de ouvido” cavaco, violão e gaita de boca. Em 1950, começou a estudar violoncelo. Mudou-se para a São Paulo em 1955, onde participou com destaque da Orquestra Sinfônica Municipal. Foi um dos fundadores e diretores da Orquestra de Câmara de São Paulo. Criou o movimento de música erudita “Música Nova”, em 1961, que incorporava atitudes experimentais à execução das peças. Passou um ano na Alemanha, tornando-se colega de Frank Zappa, com quem assistiu às aulas do mestre Stockhausen. Já no Brasil, em 1963, foi arranjador e regente da orquestra da TV Excelsior. No ano seguinte, começou a compor trilhas para cinema, sendo premiado com os filmes “Noite Vazia”, “Corpo Ardente” e “As Cariocas”. Mas para ele, isso não bastava: dizendo-se cansado da caretice das orquestras e querendo sair desse círculo, aproximou-se da música popular, onde pôs em prática suas experimentações com o grupo tropicalista e fora dele, radicalizando a idéia de uma orquestração moderna no Brasil. Assinou arranjos ousados, pontuados de erudição e criatividade, misturando sons de tudo o que parecesse moderno e irônico.
Nas décadas de 70 e 80, Duprat montou um estúdio para produção de jingles e trilhas para o cinema e televisão. Em 1987, ganhou um prêmio Kikito no Festival de Gramado, com a trilha de A Marvada Carne (recusou porque a música apareceu desfigurada), uma das quase 50 trilhas que compôs.
Mesmo sob a proteção dos deuses da música, o volume do som dos estúdios o deixou quase surdo, o que o obrigou a exilar-se num sítio em Itapecerica da Serra (SP), trabalhando com marcenaria e praticando ioga. E o mago do som passou a ser um “mestre zen”.
Porém, “seu coração balança a um samba de tamborim, emite acordes dissonantes”, e em 1990 voltou à ativa, compondo arranjos para Lulu Santos e Rita Lee. Com sua morte neste outubro de 2006, devido a complicações decorrentes de um câncer na bexiga, a música brasileira perde uma referência e a possibilidade de ser menos careta.

Publicado originalmente na edição n. 2 da Rolling Stone brasileira, com permissão dos editores.

querido antonio: que gosto ler o seu texto sobre rogério duprat. o seu caráter contextualizador ilumina sobremaneira a mente dos menos esclarecidos. por meio de duprat você passeou de maneira iluminadora pela música brasileira nos seus momentos mais decisivos. parabéns e espero que continue contribuindo dessa forma para a nossa cultura. estou com saudades e com vontade de prosear com você. abração do amigo, Aguinaldo Gonçalves