19.12.07

Três vezes Bob Dylan

Por Antônio do Amaral Rocha

Lançamentos recentes mostram mais do maior poeta da música americana

No Direction Home
Lançado em DVD duplo em 2005, é a biografia definitiva de Bob Dylan dirigida por Martin Scorsese, e como cinema-verdade capta o espírito de um dos maiores artistas da música americana de todos os tempos e também o clima da cena musical americana e londrina do meio da década de 60, através de documentários da época, como aquele realizado por D. A. Pennebaker. Traça a trajetória de Dylan desde as suas participações nos movimentos de afirmação da sociedade civil contra o truculência do Estado até a turnê londrina onde ele teve a ousadia de introduzir a guitarra na sua folk song transformando-a em folk-rock. Dylan está presente generosamente relatando a sua saga. É afirmação do cinema como retrato de uma época e sua força para enfrentar a barbárie.

Dylan Speaks

The Legendary 1965 Press Conferency in San Francisco

Por Antônio do Amaral Rocha

O ano de 1965 foi um marco para a música mundial. O rock dava sinais de transformação com a afirmação dos Beatles e a aparição de bandas como Who, Byrds, Moody Blues, o embrião da psicodelia do Pink Floyd e a tentativa de afirmação dos Beach Boys. E é lógico, Bob Dylan também estava em processo de mudança. Esta entrevista, à época transmitida pela TV, deu-se em dia 3 de dezembro, na cidade de Berkeley, São Francisco, o local do burburinho da nascente contracultura. Dylan fala durante 50 minutos, respondendo às perguntas, quase sempre com evasivas e ironias, de figuras conhecidas como Allen Ginsberg, Bill Graham e um platéia de jornalistas embasbacados. É mais uma mostra da força que carrega uma seqüência de imagens.

Dont Look Back

Por Antônio do Amaral Rocha

Dirigida por D. A. Pennebaker, esta película de 1967, lançada em 2006 em DVD, acompanha a turnê londrina de Bob Dylan de 1965, portanto um ano antes de eletrificar o seu folk song. Temos aqui um Dylan irriquieto nas memoráveis cenas de bastidores. Dylan compondo, Dylan batendo boca, Dylan fumando (e como fuma!) e especialmente Dylan no palco. Os flagrantes das cidades londrinas dos anos 60 são memoráveis. A perseguição dos admiradores está lá e Dylan atende a diversos generosamente, discute com eles argumenta, reservando o mau humor para a imprensa, sempre uma pedra no seu sapato. Donovan, Joan Baez e seu fiel escudeiro, Albert Grossman também estão presentes. É uma mostra de como o cinema consegue fazer muito mais do que um retrato de uma figura pública e se transformar num documento de época de importância histórica.

18.5.07

Liberdade para Mumia Abu-Jamal

Absurdo jurídico

No dia 17 de maio de 2007, Robert Bryan, advogado de defesa de Mumia Abu-Jamal, apresentará sua defesa na Corte de Apelação da Filadélfia. Apesar da montanha de provas inocentando Mumia, o sistema “judicial” dos EUA, saturado com preconceitos de classe e raça, reduziu seu caso para apenas quatro tópicos: exclusão de Negros da participação no júri; preconceito racial; instruções inapropriadas direcionadas ao júri sobre a pena de morte; e má conduta por parte da Promotoria. Em 1982, num julgamento arranjado que foi condenado por inúmeros grupos e indivíduos proeminentes, incluindo a Anistia Internacional, o Parlamento Europeu, a NAACP (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor – entidade anti-racista norte-americana), a Ordem dos Advogados dos EUA, o presidente da África do Sul Nelson Mandela, o presidente da França Jacques Chirac, centenas de sindicatos nos EUA e em todo o mundo, e os conselhos municipais das cidades de Detroit, São Francisco e Paris, Mumia foi condenado erroneamente pelo assassinato de um policial na Filadélfia. As principais provas da inocência de Mumia foram destruídas o confiscadas. “Testemunhas” que nunca estiveram no local do crime foram coagidas a declarar que assistiram ao assassinato. A Polícia distorceu os eventos e as provas materiais na cena do crime. Nem mesmo Mumia pôde participar da maior parte das etapas do seu próprio julgamento.

Mumia foi vítma de uma armação política

Ele é um jornalista premiado, cujo respeitadíssimo comentário social é transmitido atualmente por 124 estações de rádio dos EUA. Em 1981, como comentarista de rádio e Presidente da Associação de Jornalistas Negros da Filadélfia, ele era um dos principais críticos do Departamento de Polícia da Filadélfia. Posteriormente, muitos dos policiais denunciados por Mumia nessa época foram indiciados e condenados por corrupção, intimidação de testemunhas e forjamento de provas. O juiz responsável pelo caso de Mumia, Albert Sabo, foi ouvido por Terri Maurer Carter, estenografa do tribunal, na antecâmara do julgamento de Mumia, declarando que “vou ajudá-los a fritar aquele crioulo”. Mumia esteve no corredor da morte por quase 25 anos. Ele acabou transformando-se num símbolo internacional na luta contra o sistema bárbaro e racista de pena de morte. Autoridades da Pensilvânia estão tentando, pela terceira vez, impor a pena de morte e sua execução por injeção letal. Nós temos que transformar o preço político dessa execução e desse encarceramento muito alto para valer a pena. Nós apoiamos Mumia na luta pelo seu direito legítimo a um novo julgamento, por sua vida e liberdade. Junte-se a nós na Filadélfia na quinta-feira, dia 17 de maio, às 9h30 no Tribunal Federal, rua 6 com a Market, Filadélfia. Na Costa Oeste, nos mobilizaremos no Tribunal Federal de Apelações, Na Rua 7 com a Mission, em São Francisco, das 16h às 18h. Ligue: 415-255-1085 (EUA)Pam Africa • Ed Asner • Harry Belafonte • Heidi Boghosian, Exec. Dir, National Lawyers Guild • Angela Davis • Hari Dillon, President, Vanguard Public Foundation • Eve Ensler • Bill Fletcher Jr., Co-founder, Center for Labor Renewal • Danny Glover • Frances Goldin • Rick Halperin, President, Texas Coalition to Abolish the Death Penalty • Dolores Huerta • Barbara Lubin, Dir., Middle East Children's Alliance • Jeff Mackler • Robbie Meeropol, Exec. Dir., Rosenberg Fund for Children • Michael Ratner, President, Center for Constitutional Rights • Lynne Stewart • Alice Walker • Cornel West • Howard Zinn.

Quem é Mumia Abu-Jamal

Abu-Jamal nasceu em 24 de abril de 1954 na cidade de Filadélfia, estado da Pensilvânia, EUA.Na época em que foi preso, acusado pelo assassinato de Daniel Faulkner, policial da Filadélfia, Mumia Abu-Jamal era um reconhecido jornalista e ativista afro-americano. Ele era presidente da seção da Filadélfia da Associação de Jornalistas Negros. O número de janeiro da revista Philadelphia o havia considerado "uma personalidade a se observar em 1981". Durante o período de 1970-1981, seu trabalho foi amplamente prestigiado e Mumia foi premiado pela Corporation for Public Broadcasting. Era conhecido como a "voz dos sem-vozes" em virtude dos programas que transmitia pela National Public Radio, Mutual Black Network e National Black Network, além dos programas que apresentava diariamente na emissora WUHY, hoje WHYY, e em várias outras.Desde sua juventude, Mumia foi um ativista político. Aos catorze anos foi agredido e preso por protestar num comício da campanha presidencial de George Wallace, ocorrido na Filadélfia. No outono de 1968 tornou-se membro fundador e vice-ministro de informação do partido dos Panteras Negras, seção da Filadélfia. Durante o verão de 1970, Mumia trabalhou no jornal dos Panteras em Oakland, Califórnia, regressando à Filadélfia pouco antes de a polícia atacar as três sedes locais dos Panteras.
Trabalhando como jornalista na década de 70, Mumia publicou vários artigos nos quais criticava duramente o Departamento de Polícia da Filadélfia e a administração Rizzo, o que também contribuiu para fazer dele um "homem a se observar". Rejeitou a versão de Rizzo sobre o cerco do quartel general do MOVE em 1978, realizado por mais de seiscentos policiais fortemente armados, no bairro de Powelton Village, o que lhe custou o emprego de jornalista numa emissora. Teve de trabalhar como taxista durante a noite para manter sua família. Estava conduzindo seu táxi na noite de 9 de dezembro de 1981 quando foi agredido e baleado pela polícia e acusado de assassinar um policial. Foi julgado seis meses depois e, em 3 de julho de 1982, condenado à morte. Sua apelação ao Supremo Tribunal da Pensilvânia foi recusada em março de 1989 e depois o Supremo Tribunal dos Estados Unidos se negou a examinar o caso. Um pedido de recurso "pós-condenação" está sendo preparado para ser apresentado em tribunais estaduais. Há treze anos Mumia está no corredor da morte na prisão de Huntingdon. Desde 1990, do corredor da morte, ele voltou a trabalhar como jornalista e seus artigos têm sido reproduzidos em dezenas de jornais pelo menos quarenta, ao que se sabe nos Estados Unidos e na Europa. Em janeiro de 1991, suas informações e análises sobre a vida no corredor da morte e sobre o impacto do caso McCleskey foram publicadas no Yale Law Journal. Em 1994, os comentários de Ao Vivo do Corredor da Morte, que ele preparava para o programa All Things Considered, da National Public Radio, descrevendo a vida atrás das grades em Huntingdon, causaram tal controvérsia que foram abruptamente retirados do ar, desencadeando um vivo e intenso debate em todo o país sobre a censura e a pena de morte.
Para conhecer mais sobre Abu:
http://historia.abril.com.br/2006/edicoes/entrevista/mt_168067.shtml

17.5.07

Registro raro

Elis Regina no Fino da Bossa ao Vivo
3
volumes com suas gravações originais

Por Antônio do Amaral Rocha

Este relançamento do box (original de 1994) com três CDs de registros únicos da participação de Elis Regina no programa O Fino da Bossa, levado ao ar pela Tv Record de 1965-1967, existe por obra do incansável crítico e divulgador da música brasileira, Zuza Homem de Mello, responsável pelo áudio dos programas. Através de artimanhas técnicas, Zuza gravou momentos marcantes de Elis e convidados. O material esteve guardado por muito tempo e após remasterização permitida pelos recursos da tecnologia digital, o som daquelas memoráveis segundas-feiras do Fino da Bossa podem novamente ser apreciados. Mas não se pense que O Fino da Bossa era uma unanimidade entre o público televisivo, afinal, não se sabe por obra de quem, aqui a fusão da MPB com o jazz se deu de forma radical, gerando uma bossa nova diferente daquela carioca, proporcionada pelo som do Zimbo Trio (piano, baixo e bateria), Quinteto de Luis Loys (piano, baixo, bateria, trumpete e sax), além de uma orquestra regida por Ciro Pereira e outra por Carlos Peper. E para os convidados que não se afinassem com essa tendência tinha ainda o Regional do Caçulinha. Nunca um movimento musical fez uma aproximação tão respeitosa entre a tradição e a inovação. Os registros nos três CDs trazem compositores e intérpretes consagrados na época e talentos nascentes. Entre os conhecidos Dorival Caymmi, Ciro Monteiro, Pery Ribeiro,Vinícius de Moraes, Tom Jobim (num pout pourri de bossa bem carioca, com Elis e Jair), Baden Powell e seu incrível violão emGarota de Ipanema”, Billy Branco, Lucio Alves, o humor de Adoniran Barbosa, Wilson Simonal, Elza Soares, Agostinho dos Santos, Claudete Soares, Ataulfo Alves, Rosinha de Valença e Os Cariocas, alguns deles presentes em duetos e outros interpretados por Elis e Jair. Entre os talentos nascentes, Edu Lobo, Jorge Ben, Roberto Menescal, João Donato, Carlos Lira, Sérgio Ricardo e Gilberto Gil. É um registro raro de uma época seminal da música brasileira.

Furacão Elis

Elis foi mais que um furacão

Regina Echeverria
Versão atualizada
Ediouro, 2007


Por AARocha

Temos o perfil da Elis humana, contraditória, polêmica, corajosa, a maior cantora do Brasil de todos os tempos, e uma das maiores do mundo, e que hoje completaria 62 anos. O livro, cuja primeira edição é de 1984, ressurge agora quando se lembra os 25 anos da morte do maior ícone artístico do Brasil do século 20, com texto atualizado, novo formato, bem ilustrado e discografia completa. O texto sensível de Regina Echeverria, mesmo ao relatar picuinhas, se como se ela estivesse contando uma história ao pé-do-ouvido. A retratista conviveu com a retratada e através de depoimentos de pessoas próximas, família, amigos e parceiros traça um painel humano dos mais pungentes. Elis é revelada como uma menina simples do Rio Grande do Sul, que vem a São Paulo e Rio para vencer e em 20 anos de carreira evolui de intérprete de bolerões ao brilho em palcos do mundo, cantando sempre o melhor da MPBdoB, reinventando o nobre ofício de cantar e revelando compositores talentosos. Regina Echeverria faz ver que a obra de intérprete que Elis construiu é o retrato pleno de sua personalidade.

25.3.07

Um gênio popular

Por AARocha

O cinema a favor do cinema e da música
Cartola
/ documentário sobre Angenor de Oliveira / direção de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda / montagem de Mair Tavares

A cultura brasileira é pródiga em talentos que brotam de ambientes não letrados. É o caso de Cartola, retratado no documentário homônimo de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda (2006). Contar a vida de Cartola, suas criações, sucessos e desilusões é lembrar das origens do samba, do Rio, da Mangueira e das práticas mercadológicas do passado, quando se vendia parcerias em sambas. Este documentário subverte o gênero, pois além do uso das imagens de época, busca na ficção comprovar uma tese. O temavenda de parcerias” é reforçada com cenas de Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos; a referência ao nascimento de Cartola (1908) é ilustrada com o filme Memórias Póstumas de Brás Cuba, de Júlio Bressane e faz uma ligação entre a morte de um gênio mulato culto (Machado de Assis) e o nascimento de outro gênio popular, Cartola. As primeiras cenas mostram o velório de Cartola e sua voz em off. Mais machadiano, impossível. Chanchadas e musicais das décadas de 40 e 50 costuram a trama, além de cenas e depoimentos especialmente filmados. Uma curiosidade: Cartola gostaria de ter sido gravado por aquele moço”, e esse moço, RC, jamais gravou Cartola por acreditar que as rosas falam.

Nada Será Como Antes — MPB Anos 70, 30 Anos Depois

Por AARocha
O primeiro time da MPB

Ana Maria Bahiana - Senac Rio

Os ilustres representantes da MPB da década de 70 são as personagens. Falar de movimentos musicais é falar de comportamento, e períodos autoritários rendem boas conversas, seja em críticas ou em entrevistas. Matérias de jornais são perecíveis e se tornam duradouras quando reunidas em livros. É o caso de Nada Será Como Antes, MPB Anos 70, cuja primeira edição, da Civilização Brasileira, em 1979, foi uma curiosidade pois publicada no calor da hora. Agora, trazendo o subtítulo 30 Anos Depois, nos permite avaliar o que de relevante ficou das personagens entrevistadas e comentadas por Ana Maria na imprensa da época. Para situar o leitor atual, a autora inseriu pequenos comentários descrevendo as circunstâncias daqueles encontros. Trata-se de leitura esclarecedora para compreender os rumos que a MPB tomou nos últimos 30 anos, escrita por uma expert, também autora do essencial Almanaque Anos 70.

Publicado na revista Rolling Stones n. 5, fevereiro de 2007.

O Rogério Duprat deles ou O lado B dos Beatles

Por AARocha
George Martin
Highlights From 50 Years In Recording
EMI

Esta coletânea em CD confirma a tese antropofágica de que George Martin é o Rogério Duprat da música inglesa! O que seria dos Beatles e da música popular se não tivesse acontecido esse encontro? George Martin ajudou a “inventar” o som dos Beatles, dando consistência à genialidade de Lennon & McCartney. Como explicar a permanência desse som beatle tão familiar aos ouvidos? As criações do quarteto londrino sempre vieram revestidas de cordas, teclados, sopros e vocalizações geniais, e isso é obra de Martin. É o caso de “I Want to Hold Your Hand” (1963), o primeiro grande sucesso mundial dos Beatles, além de “Do You Want to Know a Secret”, aqui com Billy J. Kramer with The Dakotas (1963), “She’s Leaving Home”, com David and Jonathan (1967) e “Get Back”, com Billie Preston (1973). Esta coletânea mostra que nem só para os Beatles George Martin escreveu belos arranjos. Temas de diversos 007’s como “From Russia With Love” (Matt Monro, 1963), “Goldfinger” (Shirley Bassey, 1964), e “Live And Let Die” (Paul McCartney & Wings, 1973) transformaram-se em megasucessos. Destacam-se ainda produções rockers para América, “Tin Man” (1974) e para Jeff Beck, “Diamond Dust” (1975), além de criações geniais para orquestras.

Publicado na revista Rolling Stones n. 5, fevereriro de 2007.

12.2.07

Sinal aberto

Por AARocha
Gravadora lança discos avulsos do artista essencial com capas originais
Chico Buarque - Universal Music

Artistas consagrados deixam-se seduzir pelas famosas caixas temáticas que as gravadoras lançam no mercado — geralmente a preço muito alto, só podem ser adquiridas por privilegiados. 17 álbuns (1970 a 1986) de Chico Buarque (parte da caixa Construção) estão agora disponíveis individualmente.
É de se louvar esta iniciativa da Universal que preserva as capas originais e reproduz, ainda que em tamanho reduzido, as contracapas dos vinis, e informa sobre as ações da censura (a capa de Calabar, Chico Canta, de 1973, teve três versões diferentes).
O áudio destes CDs foram remasterizados e até uma absurda ação da censura é preservada — a palavra sífilis em “Fado Tropical” é substituída por um “tsk”, como no registro original.
Comentadores de CDs não devem defender teses, mas não no caso de Chico. Parafraseando “Futuros Amantes”, “os escafandristas virão/ explorar a sua casa/ sua alma, desvãos”, a tese hipotética é a seguinte: não há outro registro da História desse tempo. É possível compreender os acontecimentos só ouvindo a música popular do período “escrita” em vinil — a de Chico bastaria. São vozes e temas recorrentes em todos os CDs, como opressão (“Agora falando sério” — Chico Buarque de Hollanda n. 4 — 1970); exploração (“Construção”, do CD de mesmo nome, 1971); desagravo (“Quando o Carnaval Chegar”, do CD homônimo, 1972, com Bethânia e Nara); escracho (“Partido Alto”, Caetano e Chico Juntos e ao Vivo, 1972); desamor (“Tatuagem”, Calabar — Chico Canta, 1973); censura (“Sinal Fechado”, 1974, aqui Chico interpreta outros compositores, pois sua obra estava toda no índex da ditadura); inconformismo (“O que será”, Meus Caros Amigos, 1976); exploração de classe (“Bicharia”, Os Saltimbancos, 1977), separação (“Trocando em Miúdos”, Chico Buarque, 1978); traição (“Geni e o Zepelim”, Ópera do Malandro, 1979); showbiz (“Bastidores”, Vida, 1980); delinqüência (“O meu Guri”, Almanaque, 1981); liberdade (“Alô Liberdade”, Os Saltimbancos Trapalhões, 1981); esperança (“A Pesar de Usted”, Chico Buarque em Espanhol, 1982); fantasia (“Vai Passar”, Chico Buarque, 1984); malandragem (“A Volta do Malandro”, Chico Buarque Apresenta Malandro, 1985); repressão (“Hino de Duran”, Ópera do Malandro — Trilha Sonora do Filme, 1986).
Também por isso, Chico Buarque é uma unanimidade incontestável.
Publicado originalmente na revista Rolling Stone n. 4, janeiro de 2007.

9.2.07

Privilege não é mais um filme desaparecido!

Por AARocha
Não foi fácil mas encontrei. Garimpei e com as dicas do Carlos Reichenbach encontrei uma cópia de Privilege. Estou embasbacado com a atualidade deste filme feito em 1967 por Peter Watkins, com Paul Jones e Jean Srimpton nos principais papéis. O Reino Unido é retratado como uma lugar caustrofóbico e de arquitetura sufocante. O popular singer Steve Shorter se "deixa" manipular pela mídia, TV, empresários, igreja, status quo, mercado, enfim. É uma pecinha minúscula numa imensa e esmagadora engrenagem. Decidem tudo por ele, na ausência dele, até como deve cantar e o que deve cantar. Mais do que isso, como deve se comportar, o que deve fazer e falar. Em meio a isso tudo há uma namorada, artista plástica, compreensiva, que parece ser a única a ver os absurdos a que ele se submete. É a consciência crítica do enredo. O popular singer cai em desgraça e vai para a cadeia. Numa arena, enjaulado e algemado como um Prometeu acorrentado sua consciência será imolada. Toma tento da situação, canta, revolta-se, agride os guardas. A platéia se revolta.
Parece uma peça sendo representada. É humilhado, velipendiado e como um zumbi é escalado para representar a vontade podre do sistema, da mídia, da indústria do entretenimento, da igreja. A encenação é de tom sério, mas sabemos ser uma farsa o que estamos vendo. A farsa do mercado, da salvação através da religião. Nesse espetáculo de horrores, hordas enlouquecidas de fãs continuam a participar dessa festa macabra. Querem mais, sempre mais. A trilha sonora é algo à parte. O filme todo é recheado de belas cançoes de rock.
É um filme premonitório, mais atual impossível. Pena que dificilmente poderemos vê-lo novamente em cinemas e mesmo na televisão. Vá atrás dessa pequena obra prima, vale a pena...

8.2.07

Um grande filme desaparecido!

Por AARocha
Cinéfilo não tem mesmo jeito. Tem alguns filmes que vimos há 30, 35 anos atrás e de repente vem à memória uma cena e até um diálogo que estava perdido em algum lugar. A gente pára tudo o que estava fazendo e vai buscar algum tipo de informação, que pode estar num livro que descansa na estante, num recorte de jornal, arquivado numa pasta qualquer que se acha dentro de um armário. Depois disso tudo você descobre que o tal livro um amigo levou e não devolveu, o arquivo de recortes você jogou fora num daqueles acessos de se desfazer da coisa velha. Vencido, desiste. Mas a tal cena continua te "aporrinhando" porque se não fosse importante não teria nem vindo à tona. Comigo aconteceu isso, dia desses. De repente me lembrei de um filme chamado Privilégio e algumas cenas me vieram à cabeça. Não achei nada que pudesse satisfazer o desejo da lembrança. Até que resolvi recorrer aos sites de busca, mas nada de achar. Até que tomei contato com o blog do Carlos Reichenbach e lhe mandei o seguinte e-mail: "C
arlos, desculpe escrever assim se mais nem menos. O que nos une é o amor pelo cinema. Sempre estive de olho nos seus filmes, entrevista etc. e agora encontrei o seu blog
que já coloquei entre os meus favoritos. O motivo deste meu e-mail é indagar se você (que é uma inciclopédia, eu sei) tem conhecimento de um filme inglês da década de 60 que no Brasil passou com o nome de Privilégio. Busco informações sobre este filme mas não encontro em lugar nenhum. Só me lembro de um nome no filme, Paul Jones, que não sei se era o ator ou o diretor. Lembro-me também de algo do argumento: um ídolo popular (cantor, uma espécie de Mephisto) tentando se livrar dos compromissos que a fama lhe impunha. Se puder me ajudar, agradeço desde já. Do admirador, Antônio."
Dois dias depois, respondeu-me o Carlão:
"Antônio, você está se referindo a PRIVILEGE, de Peter Watkins, filme que fará parte do meu futuro livro "60 FILMES NOTÁVEIS". Uma autêntica obra prima, que muito lembra a peça RODA VIVA, de Chico Buarque de Holanda, encenada por José Celso. Watkins é um dos cineastas mais radicais e interessantes já surgidos na Inglaterra (atualmente, vive na França). Fez vários filmes (alguns de forma cooperativada), mas ficou eternizado por THE WAR GAME e PRIVILEGE."
Carlão teve a grandeza de dar mais detalhes, inclusive citando links: Sobre PETER WATKINS:
http://www.imdb.com/name/nm0914386/
Sobre PRIVILEGE http://www.imdb.com/title/tt0062155/
Pesquisei e fiquei plenamente satisfeito. Tanta gentileza assim só se encontra entre os aficcionados pela mesma coisa.

6.2.07

Não estamos sós!

Por AARocha
Ter cinqüenta anos hoje e falar de música, especialmente aqueles de nós que vivemos os fluidos da flower power pela rabeira, mas vivemos, torna-se difícil. Dizemos que o rock dos 70 é que era bom e a garotada de até 30 anos fica zoando da nossa cara. Falamos dos concertos, dos vinis, das capas dos vinis... e da incrível sensação que era experimentar e enrolar unzinho, ouvindo o nosso som. É lógico que esse comportamento ficou inadequado nesses dias que correm...
Os concertos, poucos que vimos em filmes eram maravilhosos. Parecia que aquele sonho embalado a canções e rock não acabaria nunca. Poucos foram filmados (afora Monterey Pop, Woodstock, Simon & Garfunkel em Nova York e outros que não temos conhecimento), muitos foram gravados e poucos lançados em vinil.
Mas teve um cara que sabia o valor daqueles acontecimentos. E não perdeu tempo. Bill Grahan (já falecido) era o cara. Ele teve a paciência de registrar em fita, direto da mesa de som, quase todos os shows que produzia em casas de espetáculos como Filmore West (San Francisco) e Filmore East (New York). Esse tesouro composto de 350 gravações foram agora localizadas e disponibilizadas num site que também comercializa camisetas, bottons, cartazes e todos os fetiches do rock. É so acessar http://concerts.wolfgangsvault.com/ (Wolfgang's Vault) e se deliciar, e por que não, viajar com concertos inteiros de Crosby, Still, Nash & Young (uma jóia rara), The Allman Brothers, The Band, Cream, The Doors, Bob Dylan, The Eagles, Grateful Dead, Guns N' Roses, Jimi Hendrix, Led Zeppelin, Madonna, Bob Marley, Metallica, Nirvana, Pearl Jam, Tom Petty, Pink Floyd, Traffic, The Rolling Stones, Santana, Bruce Springsteen, U2, Van Halen, The Who, Neil Young, Frank Zappa. Uma verdadeira jóia de A a Z, especialmente os da década de 70.

4.2.07

Wilson Barros (1948-1992)

Por AARocha
Nada mais chocante do que uma notícia dessas. Estava lendo uma resenha crítica de José Geraldo Couto, na Folha de São Paulo, de 4/2/2007, a propósito do lançamento em DVD do filme Anjos da Noite, de Wilson Barros, e logo no primeiro parágrafo fui acometido de um choque. Estava escrito: Wilson Barros (1948-1992). Explico: é chocante saber que quando duas datas estão anotadas à frente de um nome é porque aquele ser humano deixou de existir naquela última data. Fiquei sabendo, 15 anos depois, que Wilson Barros morreu. Mas será verdade? Não teria sido um engano do crítico? Na dificuldade em conferir tal informação só posso acreditar nela e ficar consternado 15 anos depois.
No final da década de 70 e início da década de 80, Wilson foi um brilhante colega no curso de pós-graduação em Cinema na ECA. Lembro-me que, enquanto um grupo de alunos orientados pelo Professor Peñuela e Ismail Xavier, entre eles eu, gatinhávamos no contato com as teorias cinematográficas, Wilson já trilhava com maestria no curta-metragem e se destacava entre todos. Certa vez, um trabalho de curso proposto pelo Professor Peñuela foi a realização de um média-metragem. Lembro-me que todas as tarefas típicas da realização de um filme foram divididas entre o grupo e a direção foi dada a Wilson, por razões óbvias, declarou Peñuela. "É o único aqui que tem perfil de diretor e quero investir nesta idéia", foram mais ou menos as palavras dele. Dessa experiência realizamos Os crimes da lata, argumento do próprio Wilson, roteirizado por ele, com ajuda dos colegas (éramos umas 10 pessoas). A minha função foi de fotógrafo de cena (still, no métier cinematográfico) e foi igualmente gratificante passar aquele período num set sob a direção de Wilson.
Lembro-me de um outro episódio: estava conversando com o Wilson e disse a ele que tinha começado a escrever um trabalho sobre o Cinema Novo sob o ponto-de-vista do Tropicalismo. Wilson ouviu os meus argumentos, me instigou, me questionou e no fim me disse: Antônio, esse é o tema da minha dissertação. Confesso que, diante disso, desisti da idéia, visto que já tinha alguém brilhante pensando no tema. Não sei se Wilson escreveu essa dissertação, nem mesmo se defendeu seu mestrado ou doutorado, mas tenho a certeza que se o fez foi de forma brilhante.
Depois disso, Wilson passou a ter uma carreira cinematográfica própria e ainda na década de 80 realizou pelo menos uma obra-prima conhecida que é Anjos da Noite.
Eu, depois daquela experiência, continuei estudando Cinema, mas perdi o contato com aqueles colegas, fiz outros cursos e entrei na pós da FFLCH da USP me propondo a estudar as relações entre Literatura e Cinema.
Achava mesmo muito estranho não ter conhecimento de nenhum filme novo de Wilson e hoje tenho essa notícia, por acaso, num complemento ao seu nome. Desconcertante e triste...

23.1.07

Porta retrato

Por AARocha
Lembrei-me de uma vez: eu, menino de 8 anos, estudava numa escola primária de bairro. Próximo do fim de ano, a professora começou a armar uma exposição com os trabalhos dos aluninhos. A mim sobrou fazer barquinhos de papel. Ela falou: mas precisa colocar o barquinho numa coisa que pareça água. Precisamos de um vidro. 'Fessora, tem um vidro em casa! Você mora perto daqui? Ali embaixo, 10 minutos. Então, vá buscar, sua mãe empresta? Esbaforido cheguei em casa no meio da tarde. Minha mãe quase desmaiou de susto. "Menino, qu’ocê tá fazeno aqui a essa hora?" Nada não mãe. Aconteceu alguma coisa? Nada não mãe, e adentrei o quarto dela. Na penteadeira tinha um porta retratos com o retrato da minha avó (um xodó da minha mãe). Desmontei, peguei o vidro e escondi debaixo da camisa. Saí correndo de volta pra escola sem minha mãe me ver. (O que a minha mãe pensou com a minha presença-ausência instantânea é coisa que nem hoje consigo imaginar). Quanto mais eu corria, mais aquela escola ficava longe. Tinha que atravessar um pontilhão, embaixo passava a linha do trem. Aí "garrei" a correr pra alcançar logo esse pontilhão. Depois dele, a escola ficava logo ali. Quanto mais corria, mais queria correr. E aquele pontilhão não chegava nunca. Afinal chegou. E eu correndo. Tropecei no calcanhar, caí (hoje me lembro que foi em câmara lenta), tentei proteger o vidro que se estilhaçou. Cortei a mão, sangrei, ralei o joelho, ralei o cotovelo. Puta que pariu! a escola já estava ali. Tinha que entrar. Entrei com a mão no bolso, o sangue escorria pela perna. 'Fessora, não tem mais vidro! Que aconteceu, menino? Nada não 'fessora. Comecei a copiar alguma coisa que estava na lousa. Meu Deus, o que eu estava fazendo ali?, se pudesse sumir...! Vertigem e sangue empapando o meu caderno Bandeirante. Não sei como sobrevivi a esse dia!
Acho que, para mim, esse episódio foi um rito de passagem para algum lugar que até hoje não sei precisar. E também não me lembro se eu contei pra minha mãe que eu quebrei o xodó dela. Não me lembro, apaguei... só me lembro do que relatei. Lembro-me de uma vez, anos depois, ela lamentar a ausência do vidro que ela chamava de “porta retrato”.

13.1.07

Era um garoto que como eu amava os Beatles e a Rolling Stone

Um leitor relembra a saga da célebre edição dos anos 70 da Rolling Stone brasileira, que revolucionou a imprensa cultural do país em 36 edições
Por AARocha

O tempo era outro. Exatamente há 35 anos, a primeira versão da Rolling Stone era lançada no Brasil. Durou dois verões, exatas 36 edições. Apesar da ditadura em que vivíamos, a revista divulgava assuntos que “faziam a nossa cabeça”. Seus 30 mil leitores, se tanto (eu entre eles), sentiam-se vingados da gorilada que queria fazer o Brasil marchar em ordem unida. Não vivíamos apenas de sexo, drogas, e rock'n'roll, pode crer. Naqueles tempos, a Rolling Stone ensinava uma nova maneira de falar, de escrever, de pensar e se relacionar com tudo. Esta é uma memória daquele tempo, apesar dos pesares, feliz. Afinal, “eu já estou com o pé nessa estrada...”
A década de 70 começou em 68 ou em 69? Imprecisão histórica? Talvez a imprecisão seja a tônica deste texto, pois ele caminha num fio de navalha. E nada mais traiçoeiro que registro embaçado, feito a partir da lembrança.
Maio de 68, as barricadas de Paris: a juventude estudantil e o operariado saem às ruas enfrentando o poder estabelecido. No Brasil: barra pesada, ditadura. Como numa onda, a juventude pensa criticamente. Passeata dos Cem Mil, congressos estudantis, prisões de estudantes e trabalhadores. Em 1969, nada será como antes. Se até 1968 a busca de um novo modo de viver considerava a mudança na forma de se fazer política, em 1969 isso já não estava no horizonte. A arte passou a moldar o comportamento. Buscou-se um modo de viver mais simples, mais próximo da natureza, longe da máquina avassaladora da tecnologia, que naquela época ainda engatinhava.
Naquele ano, Peter Fonda e Dennis Hopper filmaram Easy Rider – Sem Destino, aventura de dois jovens americanos que em suas motocicletas saem em busca da liberdade. Apesar do final deprimente (os dois servem de alvo para a pontaria de rancheiros), ganhou ovação em Cannes e recebeu indicações para o Oscar nas categorias de Melhor Ator Coadjuvante (Jack Nicholson) e Melhor Roteiro Original. O filme fazia o elogio da liberdade, com trilha sonora da pesada, como dizíamos na época: Steppenwolf, Jimi Hendrix, The Byrds, The Band, Bob Dylan. Em Sem Destino, assim como na sociedade americana, a violência já se fazia presente: cocaína e armas. Muitos de nós, meninos ingênuos, talvez não quiséssemos enxergar.Em Bethel, perto de Nova York, numa fazenda, acontece o festival de Woodstok, de 15 a 17 de agosto. Público esperado: 50 mil pessoas. Comparecimento: 500 mil. Foi filmado e lançado em 1970, como Woodstock – Three Days of Peace & Music. O festival foi um big evento comercial (mas ninguém queria saber), com a presença de vinte bandas e artistas solos, entre eles, Jimi Hendrix, The Who, Creedence, Joe Cocker, Richie Havens, Santana, Joan Baez.
Em 6 de dezembro, os Rolling Stones vão a Altamont (Califórnia) para uma apresentação ao ar livre. Antes de subirem ao palco, já havia problemas. A “segurança” do show estava sob a responsabilidade dos Hell's Angels de São Francisco, uma gangue de motoqueiros anti-flower power, armados com tacos de baseball. Qualquer maluquinho que tentasse subir ao palco era agredido. Durante a apresentação do Jefferson Airplane, que antecedeu os Stones, muitos já haviam sido carregados para atendimento nos postos da Cruz Vermelha, em bem maior número que os médicos podiam dar conta. Quando os Stones entraram, a multidão ficou histérica, e os Hell's Angels entraram em ação. Durante a execução de “Under My Thumb”, um jovem negro, Meredith Hunter, foi assassinado com uma punhalada nas costas. Mick Jagger percebeu alguma coisa estranha acontecendo, mas não sabia exatamente o quê.
No dia seguinte, os Stones descobriram que quatro pessoas haviam morrido. Há versões de que Meredith foi agredido pelos Angels por estar acompanhado de uma loira, mas soube-se depois que ele portava um revólver. O assassino, Alan Passaro, foi julgado e inocentado por legítima defesa. O emblemático acontecimento está registrado no filme Gimme Shelter. Convenhamos, havia algo de podre naquele reino: armas num concerto de rock? Em plena era flower power! “The Rolling Stones, disaster at Altamont: Let it bleed”, dizia a capa da edição 50 da Rolling Stone norte-americana, datada de 21 de janeiro de 1970. Fazer um paralelo entre a violência em Sem Destino e o concerto de Altamont não é nenhum exagero, apesar do rock. Talvez nossa ingenuidade não permitisse.
Em 1968, a vida no interior de São Paulo era uma modorra. Nada de mais acontecia. Música, só pelo rádio, com seus chiados AM. Beatles, muito Beatles, The Mamas & The Papas e sucessos comerciais. E tome Jovem Guarda. “Menina linda eu te adoro, oh! Menina pura como a flor, sua boneca vai quebrar, mas viverá o nosso amor” (versão de “I Should Have Known Better”, de Lennon e McCartney), e TV na casa do vizinho, aqueles programas de sábado à tarde. Ecos da violência política, não sei como, ficávamos sabendo. “Se o Marighela aparecer por aqui pedindo ajuda, eu o escondo, nem que seja no paiol dos cabritos”, pensava. Mas ele nunca apareceu. Colegial, teatro amador, viagens pelas cidades da redondeza, paqueras, papos, gamação, sexo (mas como fazê-lo?). Ninguém dava pra gente, só prostituta em rendez-vous. Namorada? Nem pensar, só mão-boba e olha lá. Perigava a menina querer fazer você prometer casamento. Comigo aconteceu e o namoro acabou.
Não sei como, em junho de 1969, apareceu nas mãos do meu irmão Abel um exemplar do número 15 de O Pasquim. Trazia uma entrevista com Elis Regina. Senti alguma coisa diferente naquelas páginas. Humor tipicamente carioca-ipanemense, se bem que eu nem sabia o que era Ipanema naquela época. Em novembro, na edição 22, apareceu a famosa entrevista “asteriscada” com a nossa musa Leila Diniz. Bonita, gostosa, linguaruda, Leila falou sobre homens, sexo, comportamento, censura... Entre outras coisas, ela dizia que “trepava de manhã, de tarde e de noite”. Não tinha como não amar uma mulher daquelas. Todos os palavrões, em mais um lance de humor, mas nem tanto, foram substituídos por asteriscos. Apesar de alguns trechos ilegíveis, a entrevista motivou a criação da Lei de Censura Prévia, apelidada de Decreto Leila Diniz. Quando Leila morreu num desastre de avião, em 14 de julho de 1972, aos vinte e sete anos, no auge da fama e beleza, ao saber da notícia, me tranquei no fétido banheiro da gráfica onde trabalhava e chorei.
De O Pasquim, o importante é destacar um jornalista em especial: Luiz Carlos Maciel, também dramaturgo, roteirista de cinema, filósofo, poeta e escritor. “Em 1969 estávamos mais ou menos ao Deus-dará. O sonho havia acabado, não se tinha o que fazer ou para onde ir, formava-se o vazio histórico e existencial onde medraram a luta clandestina e o desbunde...”, disse ele em seu livro Os anos 60. O sonho duraria mais dois anos, tempo suficiente para Maciel nos colocar em contato com assuntos e temas inéditos. Sua coluna Underground, de 1969 a 1971, divulgou os movimentos alternativos que eclodiam no mundo e a importância que isso tinha. Com formação de filósofo, Maciel podia entender e justificar as razões daquelas manifestações. Temas como Romantismo, Surrealismo, Marxismo e Existencialismo sartreano eram usados para explicar o hinduísmo, o embate Oriente-Ocidente, o flower power, a vida em comunidade, a revolução sexual, o desbunde hippie, a metafísica, os shows de rock, a contestação, a antipsiquiatria, a antipsicanálise, as idéias antenadas com pensamentos de uma “nova era”, a nova percepção da realidade por meio das drogas (maconha, peiote, mescalina e LSD), a bruxaria, a era de Aquarius (que parece, ainda não chegou) e a literatura da beat generation beat (Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Gregory Corso, William Burroughs).
Idéias de pensadores “sérios” como Reich, Allan Watts, Timothy Leary, Norman O’Brown, Marcuse eram constantes na coluna de Luiz Carlos Maciel, assuntos denominados genericamente de “contracultura”. Maciel devia se sentir muito só naquele ambiente, já que contracultura no Brasil soava como algo exótico, uma curiosidade americana, subjetiva e individualista para os ideólogos da esquerda tradicional. Diz Maciel: “A coluna Underground sumiu do Pasquim quando Tarso de Castro foi alijado do cargo de editor chefe e substituído por seu desafeto Millôr Fernandes. Millôr detestava essa história toda de contracultura, cabeludos, rock e, principalmente, baianos tropicalistas. O Underground foi descartado e eles fizeram até uma campanha contra os 'baihunos', que era como chamavam Caetano e Gil. Os caras do Pasquim eram muito conservadores, embora desaforados. O único sensível à nova visão era o Tarso de Castro. Foi ele, aliás, quem inventou a coluna Underground, porque sabia que eu me interessava pelo assunto”. Reflexão: se 1968 foi o clímax do pensamento crítico, 1969 inaugura o desbunde, uma negação dessa rigidez.
Fazer 17 anos em 1970, naquele interior perdido no mapa, não era mole. Imagino que aquela urbe só existisse porque por lá passa uma estrada importante. E as cidades crescem à beira de uma estrada. E a estrada virou uma fixação. “Adeus, vou pra não voltar”. Já que não dava pra sair, ficava. "Caminhando contra o vento sem lenço e sem documento..." Até o dia em que um cinema de uma cidade próxima anunciou a projeção de Woodstock. Perco o trem, volto a pé, mas não posso deixar de ver. E o que vi naquelas três horas foi veneração, missa leiga, ritual orgiástico, revelação, pura epifania! O cinema quase vazio era pequeno para tanta felicidade. Fiz uma coisa boba: anotei a seqüência das bandas, querendo segurar aquele momento para sempre, sem me dar conta de que poderia rever o quanto quisesse. Não tinha consciência de que aquilo já era História. Finalmente o rock, o flower power se manifestando na minha cara sem meias tintas. O rock existia, não era mais citação em jornal. Estava ali em som estéreo e em cores.
Se a coluna Underground deixou de existir, criou-se outro espaço de maior tamanho e com dedicação exclusiva. Nasce Flor do Mal, mais uma de Maciel, agora com Rogério Duarte, Tite de Lemos e Torquato Mendonça. Todo “composto” à mão, trazia na capa, emoldurada com vinheta simulando espinhos, um texto de Baudelaire sobre a imprensa. No centro, a imagem de uma garota negra sorrindo. Maciel declarou que “na Flor podia se fazer o que desse na veneta”. Foi o primeiro jornal totalmente contracultural brasileiro e o mais lembrado. Durou cinco números, mas em novembro de 1971, um sabiá me cantou que Luiz Carlos Maciel iria liderar uma nova aventura: a Rolling Stone americana seria publicada por aqui.
A aventura no Brasil começou com um físico nuclear inglês, Mick Killingbeck, que após visitar o país a trabalho, juntou alguns amigos (Stephen Banks, Stephane Gilles Escate e Theodore George), adquiriu os direitos de publicação da Rolling Stone por aqui e convidou Maciel a entrar no barco. “Mick Killingbeck foi quem inventou aquela Rolling Stone brasileira. Foi ele quem negociou os direitos da Rolling Stone americana e, depois de sondar o mercado, me escolheu pra editar a versão brasileira por causa de minha coluna Underground no Pasquim”, lembra Maciel. Os verões de 1971 e 1972 foram tempos de muita alegria para todos nós. E a Rolling Stone esteve presente nele durante 14 meses. “Ser o editor de uma revista era um sonho meu que realizei. Acho até que tinha jeito pra coisa e lamento que não tenha tido a oportunidade de repetir a dose. Foi uma das experiências melhores e mais úteis, um dos períodos mais felizes da minha vida”, disse Maciel.
A edição zero da Rolling Stone foi lançada em novembro de 1971. Entre os destaques, Gal Costa na capa e no miolo e uma matéria sobre uma onda de new religion que acontecia em San Francisco. Trinta e seis edições foram publicadas em menos de um ano, de 1º de fevereiro de 1972 a 5 de janeiro de 1973. Desde “Caetano está entre nós” até “Brasil 73: Nova Consciência”. 13 meses, dois verões de contracultura, rock, toque e notas ligadas. Nesse período, ficamos sabendo de tudo o que acontecia no mundo underground: comportamento, lançamentos de discos, concertos, bandas novas, teatro, literatura, cinema, o que iria ou não dar certo. Aprendemos uma forma mais descontraída de pensar, escrever e falar. Transávamos tudo, sendo que nesse tempo transar significava fazer tudo, se relacionar com tudo, não tinha só o sentido sexual. Ler a Rolling Stone era estar antenado com o mundo, não importava onde você estivesse. Aliás, quanto mais longe do centro cosmopolita, melhor. Você podia olhar para o céu e ver as estrelas, sentir o cheiro do sereno, e se tivesse uma ajuda alucinógena, viajar. E essa viagem poderia se dar sem sair do lugar.Hoje, o racionalismo não permite entender aquela proposta, mas naquele verão, não havia dúvidas. A cena musical que começou com o fantástico disco de Gal Costa (A todo vapor) terminou com o lançamento de um encontro antológico registrado ao vivo: Chico Buarque e Caetano Veloso juntos. Nada poderia ser melhor. “1972 acabou sendo um ano de total redenção da música brasileira”, dizia um dos editoriais da Rolling Stone. Mas, desde o número 34, algo de estranho estava acontecendo. “A Rolling Stone americana cobrava royalties que nunca foram pagos. Depois de não sei quantos meses, eles pararam de nos mandar material – fotos e textos que vinham todas as quinzenas. A partir daí, tínhamos que simplesmente roubar – o que não nos incomodava, pois éramos alternativos e acreditávamos na propriedade coletiva de tudo. Por idéia do Lapi (ilustrador e editor de arte) ou do Joel Macedo ou de ambos, a confissão "Pirata" passou a aparecer abaixo do logotipo. A pirataria era um valor positivo na contracultura”, diz Maciel.
Os editores pediam aos leitores que tivessem paciência, como dizia a nota “Rolling rolando”, publicada na edição 36: “Mais uma vez fomos obrigados a mudar o dia da saída do Rolling Stone nas bancas. Vamos ver se dá pra segurar. Se não der, vocês – please, please, – segurem por nós mais uma vez”. No mesmo número, um comunicado da Phonogram, assinado por André Midani, dizia: “A quem interessar possa. Declaramos que temos o maior interesse em que o trabalho desenvolvido pela revista Rolling Stone, no ano de 1972, prossiga com a mesma ênfase durante o ano de 1973. Sendo a única revista especializada na rock music e na pop music, consideramos indispensável que as companhias gravadoras e as indústrias eletrônicas dêem o devido apoio a esse empreendimento”.
Parecia um réquiem. Seria o fim? Renovei minha assinatura e escrevi uma carta, não me lembro bem o conteúdo, tentando dar uma força: “Oi, amizades, a revista não pode deixar de existir, estou aqui, não vivo sem ela, sou leitor, gosto, divulgo”. Esta carta acompanhada de uma foto minha [acima], na beira de uma estrada, com mochila nas costas, nunca foi publicada. Aquele foi mesmo o último número da Rolling Stone no Brasil. Felizmente, a pedra continuou rolando até hoje.

Publicado originalmente na edição n. 1 da Rolling Stone brasileira, com permissão dos editores.

10.1.07

Colidouescapo

Augusto de Campos
Amauta Editorial
Ou a poesia quebra a cara ou sai dessa mais rica

Pense na proximidade destes sons: colidouescapo e caleidoscópio. Lembra alguma coisa? Esta é a “invenção” de Augusto de Campos e seu irônico Colidouescapo. O “livro” — que repete o projeto gráfico de 1971, vem encapado em dobradura de papel-cartão e miolo em folhas soltas dobradas — permite que a poesia seja reconstruída pelo leitor (jogo lúdico e função poética) formando palavras, quase sempre estranhas. Mas não tente encontrá-las no dicionário! O que se busca aqui é o estranhamento e novos paradigmas. Alguém sabe o significado de restento, exiscontro (tento novamente?, existe encontro? ou ex-encontro?)? Augusto de Campos, um dos expoentes do Concretismo (junto com o irmão Haroldo e Décio Pignatari), leva a poesia a sua forma mais sintética e propõe que o leitor faça a sua “despoesia”.
Revelador aqui é o poema central ser a palavra desesprezo. Desprezo (não prezo a) pela poesia formal, descritiva, parnasiana. A experiência nos remete à morte da poesia, mas não é. Colideouespaco colidiu e escapou: a poesia permanece.

The Rolling Stones - Rock Files

Truth and Lies
ST2 Vídeo
Nem tudo é verdade
Por AARocha

Este DVD traz a história da “maior banda do planeta” sobre a ótica da sensacionalismo e de como se inventou o mito: Beatles = certinhos, Stones = depravados. Cobre o período de 1962-2002, as diferentes formações, prisões e escândalos que envolveram os Stones, e conclui melancolicamente: os rebeldes do rock de ontem são o sistema de hoje. Inclui cenas de Londres dos ‘60 que olhos fetichistas vão querer rever.

Sivuca, 1930-2006

Mestre Sivuca se foi
Por AARocha

Nascido Severino Dias de Oliveira, em Itabaiana (Paraíba), em 1930, Sivuca já tinha ouvido absoluto desde menino: durante festas na cidade, quando a banda começava as suas retretas, ele tampava os ouvidos para não ouvir a desafinação. Aos 9 anos começou a tocar sanfona, flauta e violão e iniciou a trajetória para tornar-se um dos mais celebrados multi-instrumentistas brasileiros de todos os tempos. “João e Maria” (parceria com Chico Buarque), “Feira de Mangaio” (com Gloria Gadelha) e “No Tempo dos Quintais” (com Paulinho Tapajós) são algumas das dezenas de clássicos que compôs. Sobre ele, Miles Davis teria declarado: “Finalmente encontrei alguém que me fizesse fazer as pazes com esse maldito instrumento que se chama acordeon”.
Morou em Portugal, na França e nos Estados Unidos, onde integrou, como guitarrista, o conjunto da cantora sul-africana Miriam Makeba, com quem criou o clássico arranjo de “Pata Pata”. Voltou ao Brasil em 1975 e estabeleceu parceria com a compositora Glória Gadelha, com quem era casado até a sua morte, vítima de câncer de laringe, neste 15 de dezembro de 2006.

A Bolha

É só curtir
Som Livre
Yes, nós já tínhamos hard rock
Por AARocha

A idéia deste registro surgiu num reencontro de Renato Ladeira e os amigos da extinta banda setentista A Bolha, para gravar uma participação na trilha sonora do filme 1972. Acharam que era pouco só as 2 faixas do filme e deu nisso: (des)ligaram os controles dos caras da Bolha. Taí o bom e velho rock plugado a mil. É hard rock autêntico dos anos 70 no Brasil. Bote nisso 34 anos atrás e vê-se que não era só uma promessa. O CD tem clima de domingueira, uma quebradeira atrás da outra, solos de guitarra legais. É levantar o som e balançar o corpo nos mais de 11 minutos da chapante “Desligaram meus controles”. Os temas são as eternas viagens. Viagens psicodélicas, sunshine, “no terço de um pingo”, viagens sonoras. Ouvir o som da Bolha é voltar ao tempo em que a transgressão era obrigatória para se sentir vivo. É só curtir!

Rock e cinema

1972 enfatiza sonhos e ignora os anos de chumbo
1972 / Dandara Guerra, Rafael Rocha, Bem Gil, Fábio Azevedo, Lúcio Mauro Filho, Toni Tornado / Produção e co-roteiro de Ana Maria Bahiana, direção e roteiro de José Emílio Rondeau
Por AARocha

Sob a direção e roteiro de José Emílio Rondeau, produção e co-roteiro de Ana Maria Bahiana, 1972 se passa no Rio de Janeiro, entre garotos da zona sul e do subúrbio. Em comum: todos gostavam de rock, especialmente dos Stones. Embalados pela explosão do rock carioca, representada pela banda A Bolha, os destinos de Snoopy (Rafael Rocha) e Júlia (Dandara Guerra) se cruzam num dia de junho no aglomerado de uma porta de cinema que projetava Gimme Shelter. Como “costume” na época, a polícia baixa o pau na garotada. Snoppy livra Júlia dos cassetetes e das patas dos cavalos, em seqüência bem coreografada. Mas, há um porém: não se explica o porquê da repressão. O enredo ignora que nesta época vivíamos o pior momento da ditadura militar.
José Emílio Rondeau, já experiente diretor de vídeoclipes, nesta sua primeira incursão no longa-metragem nos apresenta uma história que pretende falar de rock e jornalismo, mas não previlegia nenhum dos dois temas. Não há nenhuma viagem psicodélica, nenhum “baseado aceso”, tão próprio da época, como seria de se esperar. Então, o que é 1972? Trata-se de um filme de amor pós-adolescente que se passa durante os anos de chumbo. Os personagens são despolitizados, Snoopy quer ser inteligente, mas suas ironias são ralas. Talvez haja nisso um mérito: não se reproduziu aqui uma duplinha adolescente que lutou contra a ditadura e que virou estereótipo nos filmes, depois da mini-série Anos rebeldes.
O grande personagem do filme é secundário: o bebum Tião (Toni Tornado, em grande atuação e presença marcante), figura sábia de passado estranho, aos poucos desnudada.
Num filme que quer abordar o rock é estranho o rock internacional estar ausente. A trilha sonora (Renato Ladeira, ex-Bolha) compõe-se só de música brasileira, nada dos Stones! Roberta Flack é citada e dela nada se ouve; numa cena de dor de cotovelo ouvimos o hit Impossível acreditar que perdi você, de Márcio Greick, o que provoca um certo tom de ironia.
Sabemos que, para alguns segundos de música americana a “indústria cultural” deles cobra absurdos 200 mil dólares e os limites dos meios de produção daqui não puderam assumir essa despesa. Problemas deste tipo explicam porque 1972 demorou tanto tempo para ser lançado, afinal está pronto desde 2002.
O filme de Rondeau é importante pelo que deixa de mostrar, por instigar nossa imaginação, do que pelo que efetivamente mostra. Daí ser o cinema uma arte necessária.
A direção é ágil, faz bastante uso dos primeiros planos, valorizando a beleza de Dandara Guerra e prende a atenção. Trata-se de um filme de amor e da busca da afetividade. Nesse sentido, é um enredo envolvente.
Reserve um espaço para as suas emoções, leve um(a) acompanhante e assista numa tarde de domingo.

1972 - trilha sonora original do filme 1972

Trilha sonora original do filme 1972
Universal
Raridades do rock brasileiro da década de 70
Por AARocha

1972 é uma surpresa por revelar que houve vida inteligente no rock brasileiro da década de 70. São raridades históricas. É gratificante ouvir Karma e Os Lobos, um sinal do início do rock progressivo entre nós. Soma e Os Brazões com um rock básico e pesado. Módulo Mil, numa deliciosa levada à Led Zeppelin, talvez uma das únicas bandas de rock que tenha vendido discos na época. “É só curtir” (A Bolha) — proibida em 1972 — e “As cheias do luar” (Vide Bula) — canção-tema do filme são peças rearranjadas pelos integrantes de A Bolha em 2002 e 2005, com o mesmo espírito de 1972, e mostram o que é o bom e velho rock. O repertório traz ainda Dom Salvador & Abolição — mais cultuado fora do Brasil — numa levada black e Egberto Gismonti com uma sonoridade jazz. Completa o CD, hits da década de 70 com Caetano e Gal, em um iê-iê-iê romântico; Sá, Rodrix e Guarabira, em deliciosa sonoridade; Márcio Greick (que aqui até soa moderno); Rita Lee, Novos Baianos, Gilberto Gil e Toni Tornado, numa black music que viria a crescer bastante como tendência tempos depois.

Rogério Duprat, 1932-2006

A morte do irreverente maestro tropicalista deixa a música brasileira mais careta
Por AARocha

Rogério Duprat já foi chamado de “o George Martin da música brasileira”. Mas se o produtor inglês “só” criou o som dos Beatles, o maestro carioca fez muito mais. Já seria muito se ele tivesse apenas conhecido os meninos dos Mutantes (Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee) e criado os arranjos de obras clássicas como Os Mutantes, Tropicália ou Panis et Circensis (ambos de 1968) e A Divina Comédia (1971). Mas some-se: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Nara Leão, Chico Buarque, Erasmo Carlos, Walter Franco, Jorge Ben e Lulu Santos, todos são devedores do caldeirão sonoro do mago. É só lembrar do arranjo vanguardista para “Domingo no Parque” (Gilberto Gil) e dos arranjos “construídos” para “Construção” e “Deus Lhe Pague” (Chico Buarque) e tem-se a dimensão de sua figura.
Sem Duprat, a música brasileira não teria evoluído da bossa nova e da jovem guarda em apenas um ano e meio. E sabe-se que a soma destes dois gêneros não resultaria em filhote algum. Mas existiu Rogério Duprat e um movimento chamado Tropicalismo. Ainda bem que houve um tempo em que as pessoas se dispunham a se encontrar - tempo em que a Avenida São Luís, em São Paulo, havia cedido seus grandes apartamentos da burguesia decadente para os artistas emigrados da Bahia. Chegando na capital paulista, os baianos foram morar perto de onde acontecia o burburinho da noite paulistana na década de 60. São Paulo ainda era “pequena”: a Avenida Paulista ainda não era o antro da oligarquia financeira.
Caetano e Gil tinham passado pelo Rio de Janeiro e percebido que as oportunidades estavam na São Paulo desvairada. Caetano já havia guardado a mala que cheirava mal e fedia em um canto do guarda-roupa e, entre idas e vindas para o Rio, Salvador e São Paulo e longos papos pelo bairro de Perdizes, tudo parecia “divino e maravilhoso”. Mas nem tanto: em 1967, passeata dos cem mil; em 1968, AI5; prisão, exílio...
E o que Rogério Duprat teve a ver com o Tropicalismo? Gil conheceu o maestro Júlio Medalha, que botou o grupo em contato com Duprat, que trouxe Os Mutantes. Duprat fez o arranjo de “Domingo no Parque” e encaixou os meninos na jogada. O grupo cresceu, era o início de 1968. Caetano compõe o que viria a ser “Tropicália” — nome sugerido pelo cineasta Luís Carlos Barreto, cuja letra é uma colagem de temas arcaicos e modernos — uma representação figurada do Brasil (“Eu organizo o movimento, eu oriento o carnaval”) - e o que faziam passou a ter nome. Coube a Nelson Motta publicar no jornal Última Hora um artigo intitulado ‘A Cruzada Tropicalista’, que anunciava que um grupo de músicos, cineastas e intelectuais brasileiros fundara um movimento cultural com a ambição de alcance internacional.
No movimento, “o avesso do avesso do avesso” da MPB vigente, estava Caetano, Gil, Tom Zé, Gal Costa, Torquato Neto, Capinam, Os Mutantes, Damiano Cozzella, Júlio Medaglia, Rogério Duprat e Rogério Duarte. A proposta era uma intervenção crítica no cenário cultural brasileiro, ressaltando os contrastes, casando o arcaico e o moderno, o nacional e o estrangeiro, as culturas de elite e de massa, cinema, rádio, teatro e televisão. Considerava que na música tudo era importante; abarcava samba, bolero, frevo, música de vanguarda, iê-iê-iê, rock internacional e “discriminalizou” o uso da guitarra. A aproximação com a poesia concreta paulista mereceu apoio crítico de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. O embrião do movimento remonta a discussões entre Caetano, Gil, Bethânia, Torquato, Rogério Duarte, ainda na Bahia, sobre questões como a necessidade da universalização da música brasileira, ampliando as conquistas da bossa nova, a qual já tinha estourado lá fora. Caetano, alertado por Bethânia, prestava atenção à modernidade de Roberto Carlos, o que viria a aparecer em músicas como “Baby” (“ouvir aquela canção do Roberto”) e em “Tropicália” (“Não disse nada do modelo do meu terno, que tudo mais vá pro inferno, meu bem”). O Tropicalismo propunha redimensionar, abrir, rearranjar. Aí entra o mago-arranjador Rogério Duprat. Carioca, nascido em 1932, deu seus primeiros passos na música ainda jovem, tocando “de ouvido” cavaco, violão e gaita de boca. Em 1950, começou a estudar violoncelo. Mudou-se para a São Paulo em 1955, onde participou com destaque da Orquestra Sinfônica Municipal. Foi um dos fundadores e diretores da Orquestra de Câmara de São Paulo. Criou o movimento de música erudita “Música Nova”, em 1961, que incorporava atitudes experimentais à execução das peças. Passou um ano na Alemanha, tornando-se colega de Frank Zappa, com quem assistiu às aulas do mestre Stockhausen. Já no Brasil, em 1963, foi arranjador e regente da orquestra da TV Excelsior. No ano seguinte, começou a compor trilhas para cinema, sendo premiado com os filmes “Noite Vazia”, “Corpo Ardente” e “As Cariocas”. Mas para ele, isso não bastava: dizendo-se cansado da caretice das orquestras e querendo sair desse círculo, aproximou-se da música popular, onde pôs em prática suas experimentações com o grupo tropicalista e fora dele, radicalizando a idéia de uma orquestração moderna no Brasil. Assinou arranjos ousados, pontuados de erudição e criatividade, misturando sons de tudo o que parecesse moderno e irônico.
Nas décadas de 70 e 80, Duprat montou um estúdio para produção de jingles e trilhas para o cinema e televisão. Em 1987, ganhou um prêmio Kikito no Festival de Gramado, com a trilha de A Marvada Carne (recusou porque a música apareceu desfigurada), uma das quase 50 trilhas que compôs.
Mesmo sob a proteção dos deuses da música, o volume do som dos estúdios o deixou quase surdo, o que o obrigou a exilar-se num sítio em Itapecerica da Serra (SP), trabalhando com marcenaria e praticando ioga. E o mago do som passou a ser um “mestre zen”.
Porém, “seu coração balança a um samba de tamborim, emite acordes dissonantes”, e em 1990 voltou à ativa, compondo arranjos para Lulu Santos e Rita Lee. Com sua morte neste outubro de 2006, devido a complicações decorrentes de um câncer na bexiga, a música brasileira perde uma referência e a possibilidade de ser menos careta.

Publicado originalmente na edição n. 2 da Rolling Stone brasileira, com permissão dos editores.

querido antonio: que gosto ler o seu texto sobre rogério duprat. o seu caráter contextualizador ilumina sobremaneira a mente dos menos esclarecidos. por meio de duprat você passeou de maneira iluminadora pela música brasileira nos seus momentos mais decisivos. parabéns e espero que continue contribuindo dessa forma para a nossa cultura. estou com saudades e com vontade de prosear com você. abração do amigo, Aguinaldo Gonçalves