9.8.11

O mundo condensado de Chico Buarque

Chico Buarque
Biscoito Fino
por Antônio do Amaral Rocha


Cercado por uma campanha de marketing e divulgação até então inédita no universo da música popular brasileira este Chico é de uma aparente simplicidade franciscana, para ficar no trocadilho fácil. Mas o que importa num novo disco de Chico? Cumpre investigar para quem ele fala. Sabe-se que este artista fundamental da música brasileira trabalha com heterônimos, ora assumindo o papel feminino no eu lírico, dando voz aos reclamos da mulher, ora se expressando como um malandro, em temas de amor e coisas do cotidiano e, outras vezes, sendo ele mesmo, o poeta, compondo como um observador das mazelas brasileiras. E, grosso modo, estas três personas falam para três públicos distintos que aprenderam a admirá-los nestes quase 50 anos de carreira. Estes públicos se compõem, primeiro, das mulheres que acham que tudo o que Chico faz é genial e veem nele um ideal de figura masculina. A isto se soma o público masculino que vê nas coisas do Chico uma obra séria e finalmente um público misto masculino e feminino que é uma soma das duas hipóteses anteriores. Mas, e o lugar do jovem na galeria das pessoas que admiram Chico? Presume-se que esta parcela conheça as obras do compositor através dos discos dos pais. Nesse caso, a espera por um disco novo de Chico se dá nesse seu público já solidificado. E Chico não tem sido muito generoso. O seu último trabalho, o disco Carioca é de 2006. Nos intervalos o artista faz literatura (e também teatro) e nesse campo já investiu bastante e vem ocupando um lugar que é cada vez mais seu. Isso não é novo como se depreende da lista de livros já publicados, começando por A Banda, songbook e crônicas (1966) até Leite Derramado, romance (2009), num total de 12 livros entre teatro e romance. E quanto mais se envolve com a literatura, mais provoca polêmica, como a que se deu em 2010, com o prêmio Jabuti que ganhou com Leite Derramado, enfrentando até uma petição on-line capitaneada pela direita ressentida, para devolver o prêmio. E nesse ano Chico ainda ganhou o prêmio Portugal Telecom com a mesma obra. Esse é um universo em que Chico caminha sozinho, músico de renome, que também faz forfait no fechado universo da literatura.

O CD, de exatos 30 minutos, apresenta uma capa em preto e branco, com a foto do artista e no verso do pack um mar/rio nas mesmas cores. Seria uma referência ao Velho Chico (o rio), um paralelo com o Chico artista já também um provecto senhor de 67 anos? O encarte, apesar de colorido, lembrando as cores Google, não apresenta imagens, uma economia de elementos que pretende não chamar atenção para mais nada, além das letras e da ficha técnica. E quem está ao lado de Chico? Ele prefere se cercar de músicos que já o acompanham há anos, diferente, por exemplo, de Caetano Veloso que tem se cercado de jovens músicos, de Gil que está sempre buscando a inovação, ou mesmo de Milton Nascimento, que retornou à sua mítica Três Pontas e lá se enturmou com a rapaziada, num retorno a um imaginário clube da esquina.

Chico, que faz parte deste quarteto de ferro na MPB, não arrisca nesse quesito e o que apresenta como música também reflete essa escolha. O artista assume o passar dos anos. E não tem como comentar o conteúdo do CD, a não ser fazendo uso da intertextualidade, já que a palavra cantada é tão importante quanto a roupagem sonora que a acompanha. A primeira música, "Querido Diário", é uma espécie de "Cotidiano". Nesta, o poeta se relacionava com uma mulher ("todo dia ela faz tudo sempre igual" e valia à pena) e hoje caminha só pelas ruas e topa "amar uma mulher sem orifício", abrindo mão do "odore di femmina". A segunda faixa, "Rubato", termo italiano do universo do canto, em que o intérprete atrasa o tempo e compensa mais à frente, trata da questão do plágio e identidade da autoria, é dedicada a várias musas (Aurora/Amora/Teodora) e é a mais tradicional, na forma musical, de todo o disco (uma marcha) com acompanhamento que remete a uma banda de coreto, com destaques para os sopros, tuba, trumpete, clarinete, sax e flautas.

"Essa Pequena", um semiblues, reafirma o tema da velhice, relatando a relação de um senhor de "cabelos cinzas" com uma jovem de "cabelos cor de abóbora". Chico viu o filme Corra Lola Corra. O universo das relações apaixonadas, talvez interesseira por parte dela, aponta para um possível sofrimento. O homem velho sabe que vai quebrar a cara: ele quer ir "até a esquina", "ela quer ir para a Flórida". Desilusão à vista e assume que só por ela ter se tornado musa por um tempo "o blues já valeu a pena".

Em "Tipo um Baião" o que ressalta é a ironia da letra. O uso da linguagem mequetrefe do universo pós-adolescente, "diz que está tipo a fim", "igual que nem", dá o tom e realça o abismo de universos culturais, "logo você que ignora o baião". Como fundo apresenta também a diferença de idade como uma impossibilidade. E as referências à própria música, a metamúsica, música falando da música e suas referências também aparece como um reforço, "tipo um baião de Gonzaga". É a única música do CD que tem uma guitarra nos acompanhamentos e o último acorde, distorcido, em fade-in, é justamente o da guitarra, o que não deixa de causar estranhamento.

Como o repertório era curto, Chico não quis "desperdiçar canções" e regravou junto com Thais Gulin "Se Eu Soubesse", já presente no disco dela, ôÔÔôôÔôÔ (2011), como uma versão do autor. Trata-se de um desabafo da mulher, e aqui o eu lírico é o feminino, ao dizer "Ah, se eu pudesse não caía na tua... e aí, larari, lairiri, por aí", como querendo dizer: "te conheci, daí fudeu!". Reafirma algo bastante caro ao poeta que é o cenário do Rio de Janeiro: "não olhava a lagoa, não ia mais à praia". E o uso de "na boa" aproxima o poeta da linguagem das ruas. A novidade é a presença da harpa de Cristina Braga nos acompanhamentos.

O universo jobiniano se faz presente em "Sem Você 2" para marcar uma ausência. A tristeza pela falta da musa, do tempo bom que ficou para trás. É o relato da solidão, que de tão presente faz o poeta ouvir nuvens (o poeta parnasiano ouvia estrelas). Mas também pode ser a ausência das músicas do mestre Jobim, "as suas músicas você levou" que o entristece. "Sem Você" é originalmente um tema de Jobim.

Cercando-se dos seus amigos veteranos, Chico divide com Wilson das Neves os vocais em "Sou Eu", uma parceria com Ivan Lins, também não-inédita. É um samba de gafieira já gravada por Diogo Nogueira no disco Tô Fazendo a Minha Parte (2009). Nesta, o poeta está cheio de si, pois apesar da sua acompanhante flertar com todos no salão é ele que vai comê-la: "quem vai lhe apagar a brasa, quem brinca na área sou eu", diz o alter-ego malandro.

A valsa "Nina", uma musa distante de Moscou, desvenda a relação do poeta com a tecnologia das redes sociais, o tema moderno do CD. "Nina diz que se quiser eu posso ver na tela, a cidade, o bairro, a chaminé da casa dela". Neste caso, apesar do autor se declarar avesso às modernidades aqui ele se trai e por trás do relato estão as mensagens dos e-mails, Google Maps e os relacionamentos virtuais. A sanfona domina o acompanhamento e o fecho com um acorde dramático de piano reforça o tema da solidão.

Uma certa confusão mental na lembrança das musas Aurora, Aurélia, Ariela, Glorinha, Maristela, Soraia, Anabela em "Barafunda" e o clima de carnaval, futebol, "saia amarela", "bandeiras vermelhas", lembra a ressaca alegre de "Pelas Tabelas", que se referia à possibilidade de aprovação das Diretas Já em 1984, mas aqui é uma recordação de um tempo bom que passou. Ainda assim, a mente está liberta das pressões e o poeta embaralha os fatos, lembra dos acontecimentos coletivos, numa exaltação à memória. "E salve este samba antes que o esquecimento baixe o seu manto", diz, e é, de longe, o tema mais alegre e para cima do CD, apesar do acento nostálgico.

E o trabalho se fecha com "Sinhá", em parceria com João Bosco. É o relato das agruras da escravidão sob o ponto de vista do escravo que quer se livrar de uma punição pelo fato de ter visto a Sinhá nua. A presença do violão magistral de João Bosco e as percussões dão o clima soturno/lírico deste afro-samba. E se este Chico é todo em preto e branco a partir da capa, esta canção reforça e reitera essa ideia. O poeta se revela e se assume como porta-voz: "e assim vai se encerrar / o conto de um cantor / com voz do pelourinho / e ares de senhor".

E como situar o disco de Chico no atual panorama da música? Talvez a chave esteja nas palavras do alter ego malandro: "quem manda no samba sou eu". Quem manda faz o que quer, mas, mesmo assim Chico atende ao seu público fiel.

3 comentários:

GCGoulart disse...

Original e uma leitura afiada, caro pai. Está de "muito" parabéns. Fica meu abraço.

Ella Kobiaco disse...

Bravo! para o GRANDE CHICO.
Bravo! para os capazes de admirá-lo.
E bravo! para você que o procura decifrar com respeito, dignidade e carinho.
Beijos

Anônimo disse...

Antonio, seu texto é ótimo. Fluido, riquíssimo. Ainda não mergulhei no CD do Chico, mas já posso dizer que conheço e gostei muito.

Bjs
Walkíria