por Antônio do Amaral Rocha
Arrigo Barnabé, citado por Caetano Veloso na música “Língua”, diz que não tem nada a ver com a MPB, mas seu trabalho caminha nesse estreito limite entre o popular e o erudito. Seu nome está associado a uma vanguarda musical que apareceu em São Paulo no início da década de 80. É o que se pode ouvir em Clara Crocodilo – Arrigo Barnabé e Banda Sabor de Veneno (1980), Tubarões Voadores (1984), Cidade Oculta – trilha sonora (1986), Suspeito (1987), Façanhas (1992), Ed Mort – trilha sonora (1997), Gigante Negão (1998), A Saga de Clara Crocodilo (1999), Missa in Memorian – Arthur Bispo do Rosário (2004), Coletânea 25 Anos de Clara Crocodilo (2004) e Missa in Memoriam – Itamar Assumpção (2006).
Em 2008, lançou o CD Arrigo Barnabé e Paulo Braga, ao vivo em Porto, gravado em 2004, num único show naquela cidade portuguesa. Além disso, tem se aventurado por outros caminhos, como o programa de rádio que apresenta, uma vez por semana, na Rádio Cultura FM de São Paulo.
Você vê alguma diferença entre seu trabalho autoral e a trilha sonora para cinema que tem a característica de ser dirigida?
Quando você faz trilha sonora você trabalha como um colaborador, é um trabalho de colaboração com outra equipe. O trabalho com cinema é um trabalho todo de equipe, o diretor define no fim das contas, mas o trabalho é coletivo. Eu converso muito com o montador, que agora chama editor, e com o editor de som. Essas pessoas são muito importantes. A não ser que o diretor do filme diga “faça o que você quiser”, isso nunca aconteceu comigo, você vai ter que se adaptar ao que ele quer, tentar entender o que ele quer. É como se fosse uma arte aplicada. Eu gosto muito de fazer, porque a gente é desafiado a encontrar soluções para uma série de problemas que aparecem pela proposta estética do filme, pela cabeça do diretor, pelo pensamento do montador de som, do cara que está colocando a ruidagem, então é muito interessante, inventivo e muito legal. Estimulante.
Neste ano você esteve envolvido com o programa de artista residente da Unicamp. Como foi este trabalho?
Desenvolvemos lá o projeto Salão de Beleza. Eu passei 2008 indo duas vezes por semana à Unicamp. Eu tinha duas turmas de alunos da área de música erudita e uma turma da área de música popular. Com essas pessoas eu desenvolvi um trabalho de criação. São alunos muito bons, de muita qualidade. Eu tentei aproximá-los da idéia da performance. Eu senti que eles estão muito preparados, mas eu pensava: “onde esses caras vão tocar, meu deus”? Os caras, tocando desse jeito pra ficar tocando num bar? E comecei a pensar no problema que eles iriam enfrentar.
Que é o mesmo problema que você também enfrenta?
Sim, mas eu já sou um cara mais conhecido e eles pra conseguirem esse espaço terão que arrumar uma maneira mais imediata de entrar em contato com o público. E a performance sempre serviu pra isso. Então começamos a estudar a história da performance a partir de Alfred Jarry, quando fez o Ubu Rei, passando pelos dadaístas, pelo John Cage. Vimos como a gente consegue chegar mais ao público diretamente. Comentamos muito esse problema que a música erudita e a música popular mais elaborada sofre, por causa da incomunicabilidade, como conseguiremos resolver esse problema da incomunicabilidade e fazer aquilo que a sociedade está esperando, lógico que inconscientemente, que seja discutida pelos artistas. Eu acho que essa questão da busca da perfeição através da intervenção no corpo, da plástica, todo esse delírio consumista, isso é uma coisa que a sociedade quer discutir, por isso eu propus que a gente fizesse um trabalho em cima da idéia ao salão de beleza. Uma das histórias que eu desenvolvi com o pessoal de música popular começa assim: “Tudo começou quando Dona Narcisa levou o pequeno Kan ao seu local de trabalho. “Mamãe, mamãe, é aqui que você trabalha?” “É meu filho, é aqui que a mamãe trabalha.” “Mas o que você faz mamãe?” “Ah, a mamãe faz as pessoas ficarem mais belas”. E o menino começa a ficar obcecado pela beleza, mas ele descobre que a beleza tem um preço. Ele acompanha uma pessoa sendo depilada e vê que dói. Mas ele vai ficando obcecado e se torna um cirurgião plástico. Então é uma história dividida em quatro partes, cada grupo escreveu a música de uma parte. Eu acho muito interessante, a molecada estudante de 22, 23 anos... Tem encenação, tem pessoal de teatro, de dança envolvido, pessoal de artes visuais, os professores de iluminação, cenografia. É uma coisa profissional.
Arrigo, você lançou Arrigo Barnabé e Paulo Braga, ao Vivo, em Porto. É evidente que para um concerto só de pianos você teve que fazer uma redução dos arranjos, pensando no que colocaria no lugar de alguns instrumentos. A referência pop que as sua criações apresentam ficaram ausentes.
Sem baixo e bateria já fica uma coisa mais erudita.
Mas essa expectativa de um concerto erudito é quebrada quando aparecem as vozes.
Esse trabalho eu já estava fazendo em 1992. Eu apresentei na Sala Guiomar Novaes na Funarte. Nesse período eu já trabalhava com o Paulo Braga que já tocava comigo há uns 5 anos. Eu falei: “Paulo vamos fazer um duo de pianos”. Ele topou e eu fiz a redução das partituras para dois pianos, com o material do Clara, Office boy, tem vários materiais nesse disco que eu não usava nas versões para banda e começamos a nos apresentar. Pra você fazer um trabalho com banda fora de São Paulo, é passagem, transporte, tudo isso, e as pessoas me chamavam e me pediam sempre uma formação menor. Isso também foi um dos motivos para eu criar um duo. O ideal sempre foi fazer com piano acústico, mas raramente a gente tem oportunidade aqui no Brasil de ter uma sala com dois pianos acústicos. A gente fazia com dois elétricos, ou então com um acústico e um elétrico e começamos a trabalhar... fizemos muita coisa fora do Brasil e pensamos: “vamos registrar isso uma hora, ir pro estúdio e tal”. Quando fomos tocar em Porto não pensávamos em fazer o CD. Fomos pra lá convidados pelo Ricardo Paes que é um encenador português muito importante e também diretor do teatro Nacional São João, que me convidou para fazer o encerramento do festival de teatro de língua portuguesa, em 2004, e eu queria uma formação pequena. Tinha o duo, pensei, “vamos com o duo” e o Teatro Nacional tinha condições muito boas, uma estrutura ótima com dois pianos de cauda inteira, o equipamento de som deles, de amplificação e o técnico de som é espetacular. Fizemos um show muito legal.
Foi um show só e vocês resolveram gravar?
Um show só, numa noite e depois de um tempo o pessoal do teatro mandou pra gente o registro, que é uma coisa que eles fazem com todos os artistas que se apresentam lá. Quando recebemos vimos que estava muito bom, a gente está improvisando bastante, esse tempo todo trabalhando a gente improvisa muito. Daí ficamos com isso guardado.
E o programa foi maior do que está registrado no CD?
Bem maior, ficamos com o registro guardado, e este ano encontrando o Wilson Souto, que é o diretor da Atração e antigo criador do Lira Paulistana, no meu programa de rádio na Cultura FM aconteceu... Ele foi lá para falar sobre o Lira e daí comentamos o fato de eu nunca ter tocado no Lira Paulistana, pois na época eu tinha uma banda enorme e não cabia naquele palquinho. Se eu tivesse um duo na época com certeza teria feito. Daí ele me convidou: “vamos fazer a sua discografia”. Achei maravilhoso, ótimo. Daí conversamos: “o que a gente começa a fazer?” Eu falei do material inédito, gravado em Portugal, em 2004, com a equipe de lá: “e eu acho que o som está muito bom e veja o que acha, se vale a pena, se está tecnicamente legal, você entende disso mais do que eu”. Em seguida, eu o Paulo fizemos a seleção das faixas e mandamos para ele. Ele achou que estava adequado e que poderíamos lançar. É um material inédito, uma versão que ainda não existia, onde as pessoas podem ouvir o esqueleto da música, meio assim voyeur auditivo, como aquele cara que gosta de espiar. Essa é a história.
O público de Portugal já conhecia o seu trabalho inventivo feito anteriormente?
Fiquei sabendo que algumas pessoas foram de Lisboa para Porto para assistir. Viajaram 400 quilômetros para me assistir! Tinha uma parte do público que me conhecia. E o Ricardo Paes que me programou assistia meus concertos aqui no Brasil em 1980, com a Banda Sabor de Veneno, antes de eu gravar o Clara Crocodilo e ele não se esqueceu disso.
No CD, a faixa “Cidade Oculta” é a mais melódica e tem uma interpretação pungente. È uma valsa, se bem que desconstruída, não é uma coisa tão comum como uma valsa banal.
É, ela tem uns caminhos harmônicos complicados.
Notei que o canto é feito em cima de cada nota.
Isso é porque eu sou um mau cantor. É verdade, eu tenho que tocar a nota pra afinar.
Já li alguma coisa que você disse nesse sentido. O que eu notei é que cada nota é marcada por uma palavra ou por uma sílaba, ela é bem marcada nesse sentido.
É verdade. Essa música é uma parceria com o Gudin e a letra maravilhosa é do Roberto Riberti.
Lembra-me um pouco o que o Zé Miguel Wisnik está fazendo hoje.
Pois é, essa música é de 1984 e começou inspirada numa peça do Michel Legrand.
A idéia que passa é que ela está sendo executada num bar enfumaçado, esse é o clima.
Essa música tem a ver com o Blade Runner. Na época a gente tinha assistido “milhares” de vezes e eu falei pro Riberti, ele foi ver e adorou. Você vê que a letra fala de andróide, holograma. Quando eu mostrei pro Chico Botelho que estava começando a filmar Cidade Oculta, eu falei “acho que essa música é a cara do filme”, e ele gostou e quis saber o nome. Eu disse “Rachel”, o nome daquela replicante que no final termina com o Harrison Ford. Eu disse: “mas é claro que dá pra ser Cidade Oculta, ela fala em cidade, cidade que só chovia, e lembra Blade Runner, onde só chovia”. E daí a música entrou na trilha sonora.
Você abandonou essa idéia de ter um projeto que esteja inserido dentro da chamada MPB?
Eu não sou MPB. Parece que eu tinha esse projeto nos discos, mas tinha, na verdade, uma confusão na minha cabeça.
No disco Suspeito de 1984...
O Suspeito é um disco voltado na tentativa de ganhar dinheiro, uma tentativa de se ter uma espécie de saúde econômica, mas não consegui, não adiantou nada, quero dizer, até que me permitiu... têm várias canções ali que dá pra apresentar em show solo, que dá pra tocar e cantar sozinho num bar.
Por mais que queira, e nem sei se quer, você não é um músico com esse perfil erudito clássico. Você pode ir tocar num bar.
De vez em quando eu apareço num bar pra dar uma canja, mas eu toco muito pouco em bar atualmente.
Mas eu estava falando do seu perfil, você pode ir para um bar, para Sala São Paulo se alguém convidar....
Ah, posso... Eu vou fazer o Teatro Municipal.
Televisão, acho um pouco difícil...
É mais complicado. Eu gosto mesmo é de rádio.
Está nos seus planos mostrar esse Cd em shows aqui no Brasil?
Veja, esse é um trabalho que eu estava fazendo há bastante tempo e esse CD é um meio de divulgá-lo, porque, com as pessoas ouvindo o registro, a gente pode fazer mais shows.
Com relação aos seus discos anteriores, os vinis, todos já foram lançados em CDs?
Ainda não, Suspeito e o Cidade Oculta ainda não saíram, mas agora o Wilson Souto quer lançar a minha discografia completa incluindo as duas missas que eu escrevi em memória do Bispo do Rosário e do Itamar Assunção.
Uma observação sobre o que está registrado no CD Ao Vivo em Porto. Elas me parecem obsessivas no sentido da repetição, de buscar...
Você ouviu bem, então. É um barato, é gostoso fazer isso. É um negócio meio de transe, meio hipnótico, você entra num estado... é muito legal o que acontece no palco.
Eu notei que tem uma busca pela repetição...
Pela redundância.
Mudando de assunto, fazer Tv está nos seus planos?
Sabe, eu não gosto de fazer TV. Eu gosto de fazer rádio. Eu tenho um programa de rádio. Eu fiz um programa com um violonista erudito e é claro toquei música erudita de violão, mas também fiz um programa com o Gil Gomes, que ficou encantado com o jeito do programa.
Gil Gomes tem a ver com a narrativa do Clara...
Tem a ver, claro. Fiz um programa com o Zé do Caixão. As músicas que aparecem no programa tem a ver com o entrevistado. Tem uma seqüência no programa que faz parte de uma investigação sobre o gosto. O que eu faço? Eu pego uma música, geralmente do século XX, que tenha um grau de estranheza bem elevado e vou para lugares inusitados, faço as pessoas ouvirem e gravo o que as pessoas estão sentindo quando estão ouvindo aquilo. Por exemplo, fui até os ambulantes em volta do Teatro Municipal, fui na cooperativa dos catadores de lixo, no clube dos jogadores de xadrez. Gravo as reações das pessoas. Em cada programa eu mostro uma peça importante do repertório do século XX. Já vistoriamos as grandes obras o século XX de música contemporânea, incluindo algumas coisa de música popular como o Frank Zappa, coisas do Moacir Santos, do Itamar Assunção e até o Clara Crocodilo, Valter Franco, mas enfim, isso é inserido no programa e no final eu faço comentários sobre essas peças.
Arrigo Barnabé, citado por Caetano Veloso na música “Língua”, diz que não tem nada a ver com a MPB, mas seu trabalho caminha nesse estreito limite entre o popular e o erudito. Seu nome está associado a uma vanguarda musical que apareceu em São Paulo no início da década de 80. É o que se pode ouvir em Clara Crocodilo – Arrigo Barnabé e Banda Sabor de Veneno (1980), Tubarões Voadores (1984), Cidade Oculta – trilha sonora (1986), Suspeito (1987), Façanhas (1992), Ed Mort – trilha sonora (1997), Gigante Negão (1998), A Saga de Clara Crocodilo (1999), Missa in Memorian – Arthur Bispo do Rosário (2004), Coletânea 25 Anos de Clara Crocodilo (2004) e Missa in Memoriam – Itamar Assumpção (2006).
Em 2008, lançou o CD Arrigo Barnabé e Paulo Braga, ao vivo em Porto, gravado em 2004, num único show naquela cidade portuguesa. Além disso, tem se aventurado por outros caminhos, como o programa de rádio que apresenta, uma vez por semana, na Rádio Cultura FM de São Paulo.
Você vê alguma diferença entre seu trabalho autoral e a trilha sonora para cinema que tem a característica de ser dirigida?
Quando você faz trilha sonora você trabalha como um colaborador, é um trabalho de colaboração com outra equipe. O trabalho com cinema é um trabalho todo de equipe, o diretor define no fim das contas, mas o trabalho é coletivo. Eu converso muito com o montador, que agora chama editor, e com o editor de som. Essas pessoas são muito importantes. A não ser que o diretor do filme diga “faça o que você quiser”, isso nunca aconteceu comigo, você vai ter que se adaptar ao que ele quer, tentar entender o que ele quer. É como se fosse uma arte aplicada. Eu gosto muito de fazer, porque a gente é desafiado a encontrar soluções para uma série de problemas que aparecem pela proposta estética do filme, pela cabeça do diretor, pelo pensamento do montador de som, do cara que está colocando a ruidagem, então é muito interessante, inventivo e muito legal. Estimulante.
Neste ano você esteve envolvido com o programa de artista residente da Unicamp. Como foi este trabalho?
Desenvolvemos lá o projeto Salão de Beleza. Eu passei 2008 indo duas vezes por semana à Unicamp. Eu tinha duas turmas de alunos da área de música erudita e uma turma da área de música popular. Com essas pessoas eu desenvolvi um trabalho de criação. São alunos muito bons, de muita qualidade. Eu tentei aproximá-los da idéia da performance. Eu senti que eles estão muito preparados, mas eu pensava: “onde esses caras vão tocar, meu deus”? Os caras, tocando desse jeito pra ficar tocando num bar? E comecei a pensar no problema que eles iriam enfrentar.
Que é o mesmo problema que você também enfrenta?
Sim, mas eu já sou um cara mais conhecido e eles pra conseguirem esse espaço terão que arrumar uma maneira mais imediata de entrar em contato com o público. E a performance sempre serviu pra isso. Então começamos a estudar a história da performance a partir de Alfred Jarry, quando fez o Ubu Rei, passando pelos dadaístas, pelo John Cage. Vimos como a gente consegue chegar mais ao público diretamente. Comentamos muito esse problema que a música erudita e a música popular mais elaborada sofre, por causa da incomunicabilidade, como conseguiremos resolver esse problema da incomunicabilidade e fazer aquilo que a sociedade está esperando, lógico que inconscientemente, que seja discutida pelos artistas. Eu acho que essa questão da busca da perfeição através da intervenção no corpo, da plástica, todo esse delírio consumista, isso é uma coisa que a sociedade quer discutir, por isso eu propus que a gente fizesse um trabalho em cima da idéia ao salão de beleza. Uma das histórias que eu desenvolvi com o pessoal de música popular começa assim: “Tudo começou quando Dona Narcisa levou o pequeno Kan ao seu local de trabalho. “Mamãe, mamãe, é aqui que você trabalha?” “É meu filho, é aqui que a mamãe trabalha.” “Mas o que você faz mamãe?” “Ah, a mamãe faz as pessoas ficarem mais belas”. E o menino começa a ficar obcecado pela beleza, mas ele descobre que a beleza tem um preço. Ele acompanha uma pessoa sendo depilada e vê que dói. Mas ele vai ficando obcecado e se torna um cirurgião plástico. Então é uma história dividida em quatro partes, cada grupo escreveu a música de uma parte. Eu acho muito interessante, a molecada estudante de 22, 23 anos... Tem encenação, tem pessoal de teatro, de dança envolvido, pessoal de artes visuais, os professores de iluminação, cenografia. É uma coisa profissional.
Arrigo, você lançou Arrigo Barnabé e Paulo Braga, ao Vivo, em Porto. É evidente que para um concerto só de pianos você teve que fazer uma redução dos arranjos, pensando no que colocaria no lugar de alguns instrumentos. A referência pop que as sua criações apresentam ficaram ausentes.
Sem baixo e bateria já fica uma coisa mais erudita.
Mas essa expectativa de um concerto erudito é quebrada quando aparecem as vozes.
Esse trabalho eu já estava fazendo em 1992. Eu apresentei na Sala Guiomar Novaes na Funarte. Nesse período eu já trabalhava com o Paulo Braga que já tocava comigo há uns 5 anos. Eu falei: “Paulo vamos fazer um duo de pianos”. Ele topou e eu fiz a redução das partituras para dois pianos, com o material do Clara, Office boy, tem vários materiais nesse disco que eu não usava nas versões para banda e começamos a nos apresentar. Pra você fazer um trabalho com banda fora de São Paulo, é passagem, transporte, tudo isso, e as pessoas me chamavam e me pediam sempre uma formação menor. Isso também foi um dos motivos para eu criar um duo. O ideal sempre foi fazer com piano acústico, mas raramente a gente tem oportunidade aqui no Brasil de ter uma sala com dois pianos acústicos. A gente fazia com dois elétricos, ou então com um acústico e um elétrico e começamos a trabalhar... fizemos muita coisa fora do Brasil e pensamos: “vamos registrar isso uma hora, ir pro estúdio e tal”. Quando fomos tocar em Porto não pensávamos em fazer o CD. Fomos pra lá convidados pelo Ricardo Paes que é um encenador português muito importante e também diretor do teatro Nacional São João, que me convidou para fazer o encerramento do festival de teatro de língua portuguesa, em 2004, e eu queria uma formação pequena. Tinha o duo, pensei, “vamos com o duo” e o Teatro Nacional tinha condições muito boas, uma estrutura ótima com dois pianos de cauda inteira, o equipamento de som deles, de amplificação e o técnico de som é espetacular. Fizemos um show muito legal.
Foi um show só e vocês resolveram gravar?
Um show só, numa noite e depois de um tempo o pessoal do teatro mandou pra gente o registro, que é uma coisa que eles fazem com todos os artistas que se apresentam lá. Quando recebemos vimos que estava muito bom, a gente está improvisando bastante, esse tempo todo trabalhando a gente improvisa muito. Daí ficamos com isso guardado.
E o programa foi maior do que está registrado no CD?
Bem maior, ficamos com o registro guardado, e este ano encontrando o Wilson Souto, que é o diretor da Atração e antigo criador do Lira Paulistana, no meu programa de rádio na Cultura FM aconteceu... Ele foi lá para falar sobre o Lira e daí comentamos o fato de eu nunca ter tocado no Lira Paulistana, pois na época eu tinha uma banda enorme e não cabia naquele palquinho. Se eu tivesse um duo na época com certeza teria feito. Daí ele me convidou: “vamos fazer a sua discografia”. Achei maravilhoso, ótimo. Daí conversamos: “o que a gente começa a fazer?” Eu falei do material inédito, gravado em Portugal, em 2004, com a equipe de lá: “e eu acho que o som está muito bom e veja o que acha, se vale a pena, se está tecnicamente legal, você entende disso mais do que eu”. Em seguida, eu o Paulo fizemos a seleção das faixas e mandamos para ele. Ele achou que estava adequado e que poderíamos lançar. É um material inédito, uma versão que ainda não existia, onde as pessoas podem ouvir o esqueleto da música, meio assim voyeur auditivo, como aquele cara que gosta de espiar. Essa é a história.
O público de Portugal já conhecia o seu trabalho inventivo feito anteriormente?
Fiquei sabendo que algumas pessoas foram de Lisboa para Porto para assistir. Viajaram 400 quilômetros para me assistir! Tinha uma parte do público que me conhecia. E o Ricardo Paes que me programou assistia meus concertos aqui no Brasil em 1980, com a Banda Sabor de Veneno, antes de eu gravar o Clara Crocodilo e ele não se esqueceu disso.
No CD, a faixa “Cidade Oculta” é a mais melódica e tem uma interpretação pungente. È uma valsa, se bem que desconstruída, não é uma coisa tão comum como uma valsa banal.
É, ela tem uns caminhos harmônicos complicados.
Notei que o canto é feito em cima de cada nota.
Isso é porque eu sou um mau cantor. É verdade, eu tenho que tocar a nota pra afinar.
Já li alguma coisa que você disse nesse sentido. O que eu notei é que cada nota é marcada por uma palavra ou por uma sílaba, ela é bem marcada nesse sentido.
É verdade. Essa música é uma parceria com o Gudin e a letra maravilhosa é do Roberto Riberti.
Lembra-me um pouco o que o Zé Miguel Wisnik está fazendo hoje.
Pois é, essa música é de 1984 e começou inspirada numa peça do Michel Legrand.
A idéia que passa é que ela está sendo executada num bar enfumaçado, esse é o clima.
Essa música tem a ver com o Blade Runner. Na época a gente tinha assistido “milhares” de vezes e eu falei pro Riberti, ele foi ver e adorou. Você vê que a letra fala de andróide, holograma. Quando eu mostrei pro Chico Botelho que estava começando a filmar Cidade Oculta, eu falei “acho que essa música é a cara do filme”, e ele gostou e quis saber o nome. Eu disse “Rachel”, o nome daquela replicante que no final termina com o Harrison Ford. Eu disse: “mas é claro que dá pra ser Cidade Oculta, ela fala em cidade, cidade que só chovia, e lembra Blade Runner, onde só chovia”. E daí a música entrou na trilha sonora.
Você abandonou essa idéia de ter um projeto que esteja inserido dentro da chamada MPB?
Eu não sou MPB. Parece que eu tinha esse projeto nos discos, mas tinha, na verdade, uma confusão na minha cabeça.
No disco Suspeito de 1984...
O Suspeito é um disco voltado na tentativa de ganhar dinheiro, uma tentativa de se ter uma espécie de saúde econômica, mas não consegui, não adiantou nada, quero dizer, até que me permitiu... têm várias canções ali que dá pra apresentar em show solo, que dá pra tocar e cantar sozinho num bar.
Por mais que queira, e nem sei se quer, você não é um músico com esse perfil erudito clássico. Você pode ir tocar num bar.
De vez em quando eu apareço num bar pra dar uma canja, mas eu toco muito pouco em bar atualmente.
Mas eu estava falando do seu perfil, você pode ir para um bar, para Sala São Paulo se alguém convidar....
Ah, posso... Eu vou fazer o Teatro Municipal.
Televisão, acho um pouco difícil...
É mais complicado. Eu gosto mesmo é de rádio.
Está nos seus planos mostrar esse Cd em shows aqui no Brasil?
Veja, esse é um trabalho que eu estava fazendo há bastante tempo e esse CD é um meio de divulgá-lo, porque, com as pessoas ouvindo o registro, a gente pode fazer mais shows.
Com relação aos seus discos anteriores, os vinis, todos já foram lançados em CDs?
Ainda não, Suspeito e o Cidade Oculta ainda não saíram, mas agora o Wilson Souto quer lançar a minha discografia completa incluindo as duas missas que eu escrevi em memória do Bispo do Rosário e do Itamar Assunção.
Uma observação sobre o que está registrado no CD Ao Vivo em Porto. Elas me parecem obsessivas no sentido da repetição, de buscar...
Você ouviu bem, então. É um barato, é gostoso fazer isso. É um negócio meio de transe, meio hipnótico, você entra num estado... é muito legal o que acontece no palco.
Eu notei que tem uma busca pela repetição...
Pela redundância.
Mudando de assunto, fazer Tv está nos seus planos?
Sabe, eu não gosto de fazer TV. Eu gosto de fazer rádio. Eu tenho um programa de rádio. Eu fiz um programa com um violonista erudito e é claro toquei música erudita de violão, mas também fiz um programa com o Gil Gomes, que ficou encantado com o jeito do programa.
Gil Gomes tem a ver com a narrativa do Clara...
Tem a ver, claro. Fiz um programa com o Zé do Caixão. As músicas que aparecem no programa tem a ver com o entrevistado. Tem uma seqüência no programa que faz parte de uma investigação sobre o gosto. O que eu faço? Eu pego uma música, geralmente do século XX, que tenha um grau de estranheza bem elevado e vou para lugares inusitados, faço as pessoas ouvirem e gravo o que as pessoas estão sentindo quando estão ouvindo aquilo. Por exemplo, fui até os ambulantes em volta do Teatro Municipal, fui na cooperativa dos catadores de lixo, no clube dos jogadores de xadrez. Gravo as reações das pessoas. Em cada programa eu mostro uma peça importante do repertório do século XX. Já vistoriamos as grandes obras o século XX de música contemporânea, incluindo algumas coisa de música popular como o Frank Zappa, coisas do Moacir Santos, do Itamar Assunção e até o Clara Crocodilo, Valter Franco, mas enfim, isso é inserido no programa e no final eu faço comentários sobre essas peças.
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